Descubra Nikkei

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Arigatai!!!

Hiro-chan, asagohan yo! – assim minha mãe me chamava para tomar o café da manhã e eu prontamente me levantava com alegria e boa disposição para saborear arroz com o nutritivo misoshiru!

Morando no interior, Osvaldo Cruz, Alta Paulista, naquela época (final de 1960 a final de 1970), não era fácil obter ingredientes apropriados para os pratos nipônicos. Os imigrantes e seus descendentes improvisavam com o que havia no Brasil, e minha mãe não era exceção: dona Takeko, mais conhecida como dona Carmen, sabendo que a filha caçula adorava sashimi, se virava com sardinhas, e eu saboreava com gosto!  Em casa tinha uma plantação de hibisco para fazer a conserva ume, cujo sabor azedinho imitava o do umeboshi, feito de pêssego japonês.

Meu pai com minha filha em 2002.

O shiro gohan (arroz sem tempero) era um item obrigatório, mesmo que feito com arroz brasileiro ou misturado com motigome (arroz japonês bem pegajoso). O motigome puro era item de luxo só usado em ocasiões especiais. Do shirogohan era feito o onigiri (bolinhos de arroz). Qual criança não amava?

Em relação às histórias sobre comida, meu pai também é uma presença forte nas minhas memórias.

Hiro-chan, Tupã ni yoji ga arunode, issho ni ikoka? “Tenho um afazer em Tupã, não quer ir junto?” – assim meu pai me chamava para lhe fazer companhia. Íamos com o Fusquinha ou com a Brasília para a cidade vizinha.

Eu ia com disposição sabendo que ia me render um nabeyaki no restaurante da rodoviária, cujo dono era nikkei. Não tinha ingredientes sofisticados importados como agora, mas os toppings eram ótimos, tinha até kamaboko (massa de peixe)! Por cima, um ovo frito com miolo mole que achava intrigante. Sabor único, mesmo após tantos anos, não o achei em nenhum outro lugar nem consegui reproduzir o sabor do caldo em casa.

Meu pai nem precisava dizer: Mottainai! Zembu tabenasai! (Que desperdício! Coma tudo!) – pois o nabeyaki todo já tinha tido seu final nobre!

Obento era presença obrigatória quando íamos viajar. Onigiri ia bem com bife, omelete, ume e até linguiça, numa combinação “poliglota”. Tomando cuidado para não incluir tsukemono (picles) – muito malcheirosos – quando íamos de ônibus a algum lugar. Era um espetáculo à parte. Outro item culinário, o mochi (bolinho feito de motigome batido) não era só no Ano Novo, eu queria ozooni a qualquer hora. Gente, que delícia mochi quentinho com caldo de shoyu! Muita coisa fica maravilhosa com cebolinha picada por cima!

Comida é o primeiro item da nossa memória afetiva, mas meus pais também valorizavam muito os estudos, a leitura e o conhecimento, assim, nossa casa era pequena, mas tínhamos duas estantes. Lá ficavam as revistas femininas japonesas da minha mãe, mangás para meninos do meu pai, juntamente com a enciclopédia Barsa e os grandes clássicos da literatura brasileira (Guimarães Rosa, Érico Veríssimo etc.) que minha mãe costumava ler.

Eu e meu quadro na Exposição de Artes em Adamantina, 1980.

As revistas me encantavam pelo seu colorido e a variedade de assuntos; o artesanato me despertou tanto que eu pratico até hoje. Minha mãe me ensinou a fazer crochê lendo guias gráficos.

Eu era fanática por mangá, meu pai costumava lê-los para mim, e eram momentos muito gostosos de companheirismo, em que ele colocava emoção nas falas e nas onomatopeias, deixando as histórias mais divertidas. Mangá me fez querer ser desenhista e me ajudou a aprender muito do japonês. Eu esperava ansiosa cada próximo exemplar para saber o desenrolar das histórias. Livros infantis de páginas bem grossas com qualidade de impressão que não havia aqui e me maravilhavam.

As cores, as formas, a delicadeza e a sutileza das artes japonesas entraram no meu coração e as carrego até hoje. 

Nas vezes que meu pai ia para São Paulo, trazia algum presente para os filhos. O crayon na caixinha era mágico! Tanoshimi!

Era meu sonho frequentar o nihon gakko (escola de língua japonesa), pois queria desvendar os muitos livros que me rodeavam, mas não me foi possível à época. Mas não me foi negado o livro número 1 da série de livros para nikkeis brasileiros impressos no Japão. Nippongo no. 1 ...  Sora aoi Sora... Todos dessa época, com certeza, se recordam dessa série de livros didáticos.

O undokai (gincana poliesportiva) todo início do Ano Novo na ADOC (Associação Desportiva de Osvaldo Cruz) era inesquecível. Todos da minha família participavam. Confesso que eu corria feito desesperada na terra de chão meio batido e muitas vezes ficava pelo menos em terceiro lugar, exceto quando eu era muito pequena e minhas pernas curtas não davam conta. Os prêmios eram caderno espiral, brochura, caneta e lápis, como incentivo aos estudos. As crianças que recebiam os cadernos ficavam orgulhosas... Minha mãe era imbatível com seus pés velozes, derrubar o bastão em revezamento nem pensar!

Carnaval na ADOC em 1979. Da esquerda para direita: minha irmã, uma amiga dela, minha prima e eu na frente.

Na mesma ADOC não podia faltar o campeonato de beisebol. As famílias nikkeis levavam obento e ocupavam as arquibancadas. Belo momento para as adolescentes paquerarem os rapazes nikkeis com pinta de galã. O time da minha cidade chegou a ganhar diversos campeonatos.  Ali também aconteciam os bailes de Carnaval, mas a minha mãe somente nos permitia ir às matinês, que eram recatadas conforme a educação japonesa exigia. 

Outra lembrança do Ano Novo era o costume de as crianças irem à casa das famílias nikkeis desejar Feliz Ano Novo na expectativa de ganhar uns trocados, era praxe. Tanoshimi era a palavra que definia o sentimento infantil nessa ocasião. Como residíamos na zona rural, íamos somente à casa da minha tia que era bem perto da nossa; mesmo assim eu e a minha irmã íamos correndo depois da minha mãe dar o aval, coração saltitando na expectativa. Não me lembro o que eu fiz das moedas que recebi, só me lembro da alegria de tê-las recebido.

Não poderia deixar de contar sobre o evento que tirava a monotonia das férias escolares de julho: a Festa do Ovo em Bastos, a capital do ovo e de maior concentração de nikkeis da região. Granja de ovos exige trabalho diário e ostensivo, os nikkeis, afeitos ao trabalho se deram bem. 

Monte Fuji feito de ovos e meu pai e Mariana na Festa do Ovo, 2005.

Esse evento também me ajudou a perceber um mundo grande. Deslumbrava-me o colorido e as novidades. Variedade de produtos nacionais e importados. Máquinas agrícolas, aviárias. Alimentos japoneses e de outros países. Foi aí que conheci o delicioso “Milkiss”, bebida leitosa e doce. Barracas vendendo o brasileiríssimo pastel, udon e lámen também. As associações de províncias apresentando o tradicional odori (dança típica japonesa). A perfeição dos artesanatos, em especial as bonecas com quimonos.

Festa do Ovo. Eu com Mariana, Clara e meu pai Tsutomu, 2006.

No Festival do Bon Odori era divertido encontrar os meus primos na frente do kaikan (sede da associação) e ver as mulheres dançando com trajes típicos. A gente entrava no final da fila e tentava imitar os movimentos. Meu primo, dois anos mais velho que eu, fazia os gestos muito bem, eu era a menor do grupo e me esforçava.

O kaikan era um salão simples quase grudado a um templo budista onde se faziam missas em prol dos mortos. Eram lá realizadas as festas de casamento, de aniversário e outros eventos. Os discursos eram em japonês e longos, e as crianças famintas tinham que suportar essa tortura. Nos casamentos ouviam-se o Banzai (Viva!) intercalado com “Bibaaa!”, com sotaque japonês.

Um tio meu celebrou os seus 60 anos ali e chegou a apresentar uma peça homenageando o aniversário da imigração. Ele, que chegou ao Brasil com 16 anos, representou um imigrante recém-chegado e as dificuldades de se estar numa terra longínqua e completamente diferente da sua terra natal.

Hoje, passados tantos anos e morando na maior cidade da América Latina, os dias de simplicidade do passado não mais voltarão, mas três palavras da época definem o meu estilo de vida: Tanoshimi, as alegrias de uma boa expectativa que trazem à mente muitos sonhos e perspectivas; Mottainai, não praticar o desperdício, que me ensinou a ter uma vida sem ostentação, com discrição, e a palavra que minha mãe falava com frequência: Arigatai, gratidão, ela aconselhava a sermos gratos pelo que tínhamos, principalmente pela saúde.

Ainda tenho muitos sonhos e, se no passado não tive oportunidades, hoje conto com a Internet. Esse instrumento está me possibilitando prosseguir na realização dos meus sonhos.

Há uns 4 anos iniciei pintura em aquarela, há uns 3 anos comprei um curso on-line para aperfeiçoar o meu japonês e pretendo seguir alguns tutoriais de desenho de mangá no Youtube.

Tenho uma gratidão muito grande aos meus pais pela infância que me proporcionaram. Eram pessoas simples, inteligentes e sábias, que souberam apresentar a vastidão do mundo para os seus filhos, incentivando os seus dons e talentos, alimentando os seus sonhos.

Hoje não mais estão conosco, mas percebo o legado deles quando vejo minha filha, hoje já adulta, ser uma pessoa ética (também é mérito do meu esposo não nikkei).

Eu, Mariana e Paulo, meu esposo, 2023.

Eu noto isto quando vejo o seu gosto por mangás e as ilustrações que ela cria. Quando vejo habilidades artesanais em bijuterias com arames e pedras, além do gosto por culinária nipônica. Fico feliz que ela também tenha conseguido captar que há milhares de possibilidades neste vasto mundo e a importância de crer no seu potencial.

Na fileira superior: minhas pinturas. Na fileira inferior: gravuras da Mariana.

Arigatai! Arigatai! 

* * * * *

O nosso Comitê Editorial selecionou este artigo como uma das suas histórias favoritas da série Crescendo Nikkei. Segue comentário.

Comentário de Laura Honda-Hasegawa

Crescendo Nikkei contou com a participação de cinco mulheres nikkeis brasileiras que falaram de como a cultura japonesa influenciou suas vidas, bem como abriram o coração para expor seus sentimentos, percepções e dúvidas com relação à identidade de ser uma nikkei. Assim como temos histórias surpreendentes, nossa atenção é despertada por aquelas repletas de episódios dos mais interessantes, a ponto de fazer com que a missão de selecionar apenas uma se torne algo dificílimo. Acabamos por optar pela história que aborda de forma completa o tema proposto: “Arigatai!!!”

A autora, Edna Hiromi Ogihara Cardoso, retrata com propriedade como a sua vida esteve conectada às coisas do Japão desde a infância: culinária, língua, mangá, revistas importadas, artes, eventos da comunidade nikkei. Atualmente, Edna compartilha com sua jovem filha a rica herança que lhes foi transmitida e junto com a família, todos dão graças por tudo! Arigatai!!!

 

© 2023

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Sobre esta série

Nuestro tema para la 12.° edición de Crónicas Nikkei —Creciendo como Nikkei: Conectando con nuestra Herencia— pidió a los participantes que reflexionaran sobre diversas preguntas, tales como: ¿a qué tipo de eventos de la comunidad nikkei has asistido?,¿qué tipo de historias de infancia tienes sobre la comida nikkei?, ¿cómo aprendiste japonés cuando eras niño?

Descubra a los Nikkei aceptó artículos desde junio a octubre del 2023 y la votaciónde las historias favoritas cerró el 30 de noviembre del 2023. Hemos recibido 14 historias (7 en inglés, 3 en español, 5 en portugués y 0 en japonés), provenientes de Brasil, Perú y los Estados Unidos, con uno presentado en varios idiomas.

¡Muchas gracias a todos los que enviaron sus historias para la serie Creciendo como Nikkei!

Hemos pedido a nuestro comité editorial que seleccionara sus historias favoritas. Nuestra comunidad Nima-kai también votó por las historias que disfrutaron. ¡Aquí están sus elegidas!

(*Estamos em processo de tradução das histórias selecionadas.

 

A Favorita do Comitê Editorial


Escolha do Nima-kai:

Para maiores informações sobre este projeto literário >> 


*Esta série é apresentado em parceria com:

     

 

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Design do logotipo: Jay Horinouchi

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About the Author

Nasceu no interior do Estado de São Paulo. Casada, com uma filha. Formada pela FAUUSP. Atua como professora voluntária de artesanato. Tem como hobby aquarela e escreve quando inspirada.

Atualizado em outubro de 2020

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