Em espanhol, a palavra ubicua tem dois significados. O segundo, no que refere a uma pessoa, quer dizer: “Aquele(a) que quer estar presente em tudo e vive em movimento contínuo”.
Essa foi a palavra que a comunicadora audiovisual Narumi Ogusuku usou como título de um curta-metragem autobiográfico com o qual participou da última edição do Salão de Arte Jovem Nikkei no Peru.
Ubicua, o curta-metragem, mergulha na identidade de uma nikkei peruana que nasceu e cresceu no Japão, se mudou para o Peru aos 12 anos e sente que “não é nem de lá nem de cá”.
UBÍQUA, A GÊNESE
Narumi nasceu em 1996 na província de Gunma, onde os seus pais decasséguis – ambos peruanos sanseis – se estabeleceram.
Em casa ela se comunicava em espanhol, mas o seu ambiente fora de casa era o japonês (escola, amigos) e ela se sentia mais à vontade falando nihongo. O Peru era a terra dos seus pais, o país onde às vezes ia de férias, mas não era o seu lar.
Sua vida foi transformada em 2008 quando se mudou para o Peru. Foi difícil se adaptar apesar dela ter sido matriculada numa escola nikkei, o que suavizou o impacto da mudança.
Durante a sua época de escola, ela fazia parte de círculos exclusivamente nikkeis. Fora da escola, ela cantava em eventos da comunidade.
Ao entrar na universidade, ela passou por uma nova mudança de coordenadas (apesar de não tão radical como o seu adeus ao Japão). Ela ingressou em um novo ecossistema onde a presença nikkei era mínima e teve que lidar com a ignorância daqueles que costumam usar o mesmo rótulo para todas as pessoas de origem asiática, como se fossem indistinguíveis entre si.
Narumi e uma estudante de ascendência coreana embarcaram na tarefa de ensinar aos seus colegas as diferenças e de meter nas suas cabeças que não as chamassem de “chinas”. Tiveram sucesso, ela lembra com satisfação.
Paradoxalmente, a universidade a aproximou das suas origens, da sua identidade, quando num curso lhe pediram que fizesse um documentário sobre a sua vida.
Assim surgiu Ubicua, um projeto universitário que alcançou um público maior quando Narumi aceitou o convite do artista plástico Haroldo Higa para participar do Salão de Arte Jovem Nikkei.
RETORNAR AO SEU PAÍS?
No Japão, Narumi tinha consciência de ser estrangeira. Seus pais sempre batiam naquela tecla. Como alguém de outro país, diziam que ela tinha que se comportar bem para que os japoneses não pensassem que eles eram o tipo de gente que desobedecia as regras de convivência social, "para que não falassem mal dos estrangeiros".
O fato de escreverem o seu sobrenome em katakana na escola era outro sinal dela ser estrangeira.
Além disso, sabia que a sua estada no Japão era temporária, já que a sua mãe sempre pensava em voltar ao Peru.
No entanto, soava estranho para ela que os seus pais falassem em voltar para o Peru. Como você pode retornar a um país onde não nasceu, onde nunca morou?
“Seus pais te dizem: 'Um dia vamos retornar ao Peru' ou 'você é peruana apesar de morar no Japão'. Mas quando você vem para cá (ela está se referindo ao Peru), você claramente se dá conta que não é nem de lá nem de cá”, Narumi explica.
Também era estranho quando os seus amigos japoneses lhe diziam: "Você está voltando para o teu país." Teu país? Você nasceu no Japão, viveu a vida toda lá, fala o idioma como um nativo, mas ainda assim o seu país é um outro lugar.
Os japoneses sempre a trataram como uma igual, como se fosse uma deles; nunca sofreu discriminação ou bullying. No entanto, quando lhe diziam “você está voltando para o teu país”, ela se dava conta que no fundo eles a viam de forma diferente.
Saber que era diferente não foi um drama para Narumi, mas alimentava a existência de um certo conflito interno. Em um país que valoriza a homogeneidade, ela tentou parecer ainda mais com os outros.
Quando se mudou para o Peru e passou a estudar numa escola nikkei, ela também começou a se sentir como uma estrangeira. Em teoria, ela era uma nikkei como os demais, mas havia uma diferença: Narumi era "de fora, de lá".
Ou seja, no Japão ela era do Peru e no Peru ela era do Japão.
Apesar de tudo, os pontos em comum com os seus colegas de escola eram mais numerosos que as diferenças. Além disso, felizmente, havia muitos outros como Narumi; filhos de ex-decasséguis, nascidos ou criados no Japão.
Por outro lado, a jovem artista lembra que eles, que tinham o hábito de se comunicar em japonês, eram pressionados a falar espanhol para acelerar a sua integração ao Peru.
"Você tem que falar espanhol porque estamos no Peru", diziam a ela.
“Outra coisa frequente: eles nos diziam que tínhamos que ser mais espertos, que nos faltava experiência de rua, algo que a gente precisava para sobreviver no Peru”, ela ri.
O lado mais complicado da sua adaptação no Peru foi justamente a falta de segurança. No Japão, um aluno da primeira série vai sozinho à escola, algo inconcebível no Peru. O fato de morar em Lima representou para Narumi uma redução das liberdades às quais estava acostumada no Japão.
POR TODA A PARTE
Durante a entrevista, a yonsei usa várias vezes a expressão "nem de lá nem de cá". Mas isso não quer dizer que ela se sinta apátrida. Depende.“Eu me identifico com os dois países, ou não me identifico com nenhum dos dois”, ela diz.
“Eu acho que, de uma certa forma, 'não sou nem de lá nem de cá' é uma coisa que nunca vai mudar. Mas ao mesmo tempo eu posso me sentir tão peruana quanto nikkei, quanto uchinanchu, ou também posso me identificar totalmente com o meu lado japonês”, acrescenta.
Narumi não vê essa ambivalência como um problema. O título do seu curta tem uma perspectiva positiva: ubíqua como quem é daqui, mas que também é de lá, que está por toda a parte.
Por outro ângulo, a sua experiência enriquece e diversifica a sua nikkeidade.
Ao contrário dos nisseis ou sanseis, que na sua maioria não falam japonês e cuja nikkeidade é derivada da cultura e história herdadas dos seus antepassados, o dela é nutrido por uma relação direta com o Japão.
Narumi, com outro tipo de formação e visão, se considera uma "nikkei incomum" em referência aos padrões vigentes até a geração dos seus pais.
O fato de ter se estabelecido no Peru fez com que a palavra “nikkei”, que no Japão lhe parecia distante, ganhasse significado e relevância. Na escola, onde conheceu outros descendentes de japoneses como ela, começou a se identificar como nikkei. Além disso, ela ficou mais chegada às suas raízes okinawanas, que hoje ela reivindica.
Sua experiência no Salão de Arte Jovem Nikkei também foi valiosa. Ela descobriu outros modos de sentir a sua nikkeidade, de se aproximar dela (da comida, por exemplo). “Eu achei muito interessante”, lembra.
Ubicua é a primeira obra na qual Narumi fala sobre a sua identidade. Apesar dela abordar especificamente as suas próprias experiências e as de jovens como ela, descobriu que a obra afetou outras pessoas de uma maneira que ela não havia previsto.
Por exemplo, o curta-metragem fez um certo público refletir sobre as aventuras dos isseis, enquanto que alguns nikkeis, apesar de não terem morado no Japão, se identificaram com Ubicua por causa do conceito de "não ser nem de lá nem de cá".
Hoje o país onde nasceu parece distante para Narumi. "O que é o Japão? Uma pergunta difícil", diz. Ela para para pensar por vários segundos.
“Eu me lembro de lá, mas parece algo tão antigo... Assim como os isseis guardaram aquela lembrança de como era o Japão quando eles moravam lá, o que acabou virando um costume que eles mantiveram para sempre no Peru, de repente eu mantenho uma parte do Japão que conheço ou tenho na memória o Japão de uma forma que não existe mais”, responde.
Ainda assim, não fecha a porta para a possibilidade de voltar a morar no Japão. Há alguns anos, ela passou um tempo lá com uma bolsa de estudos e a experiência foi positiva. "Continua a ser uma parte de mim", ela diz.
Além disso, como desfrutou da experiência de criar um documentário e de explorar o conceito de nikkeidade, ela gostaria de fazer um outro documentário sobre os nikkeis que vivem no Japão, para onde teria que viajar para fazer o trabalho in situ.
O Japão a espera.
© 2023 Enrique Higa Sakuda