Nikkei significa descendentes de japoneses nascidos fora do Japão.
Quando dei aula para uma aluna japonesa, ela me disse que eu era diferente dela, era nikkei-jin, uma “pessoa do país dos nikkeis”.
Realmente, crescer nikkei significa estar entre dois mundos muito diferentes. Dentro de dois kanjis. Ir e vir entre o Brasil e o Japão, o Japão e o Brasil.
Aqui no Brasil, ser nikkei é ser nipo-brasileiro: japonês e brasileiro ao mesmo tempo. Como é possível um ser humano ser duas coisas? Acordar de manhã japonês e dormir brasileiro? Almoçar brasileiro e jantar japonês?
Não dá. Como resultado, sou estrangeira no meu próprio país. É uma eterna contradição. Não importa quantas vezes eu me levante de manhã, viva, trabalhe, leia e escreva em português, dance, sorria, viaje, eu sou sempre japonesa demais para ser brasileira, e brasileira demais para ser japonesa.
No Brasil, esperam que eu seja dócil, gentil, mansa. Que minhas ações sejam silenciosas, que eu não diga em voz alta aquilo que me incomoda. Esperam que eu seja muito boa em matemática, que seja médica ou engenheira.
No Japão, esperam que eu seja uma boa mulher, do tipo quieta. Magra, gentil e maternal. Que aceite toda a violência e assédio em absoluto silêncio. Não preciso de profissão, eu preciso é ser fértil.
Em ambos os lugares, esperam que eu não diga o que penso. Só que eu digo muito. Grito o que penso. E penso coisas demais.
Eu penso em todas as minhas tias que não tiveram voz nos seus casamentos arranjados. Eu penso em todas as batchans que apanharam dos seus maridos enquanto trabalhavam na roça e em casa, todos os dias. Eu penso no meu tio alcoólatra que nunca questionou o quanto de suas dores vinham da falta de cuidado com a saúde mental. Eu penso no meu outro tio que trabalhou como decasségui até os 79 anos e morreu de AVC no chão da fábrica e ninguém ajudou.
Eu penso no meu amigo gay que não saiu do armário até hoje porque sabe que os pais não vão aceitar. Eu penso na minha amiga que fez um aborto e nunca contou para ninguém, sofreu sozinha a dor do filho que não teve.
Eu penso na minha própria história, abandonada pelos meus pais em uma jornada sem fim por dinheiro e sobrevivência. Abandonada num sistema feito para nos destruir saindo de Guarulhos direto para Narita.
Eu penso nas minhas irmãs assediadas desde criança por homens obcecados por mulheres “orientais”. Eu penso em tudo isso, e esses pensamentos não saem da minha cabeça.
Ser nikkei para mim nesse mundo doloroso existe em todos os passaportes preenchidos com os vistos, as escalas, o cansaço, os jantares de despedida. Crescer nikkei me lembra que eu ainda não sou brasileira suficiente, já que nunca vi ninguém como eu na televisão.
Me lembra que eu ainda não aprendi japonês suficiente para ser japonesa. Que só de olhar para mim os japoneses diziam “tem algo de errado com ela”. Olhar no espelho e enxergar esse não-lugar de estrangeira sempre me perseguindo.
Minha batchan não foi batizada com nome em português. O pai dela veio do Japão e acreditava piamente que iria retornar em alguns anos, por isso, os 3 primeiros filhos não tinham nome em português. Só que a partir do 4º ele desistiu. Daí em diante só nomes em português. A realidade da roça esmagou os sonhos do meu bisavô.
Como ele, muitas famílias decasséguis matriculam seus filhos em escolas brasileiras no Japão, com o sonho de retornar para o Brasil um dia. As crianças se formam, tornam-se adultas, e o diploma do MEC não serve para nada na fábrica. Anos de sonhos destruídos pela realidade do trabalho manual e falta de perspectiva.
Então, se me perguntarem o que é crescer como nikkei, só posso dizer que ainda estou crescendo e acho que ainda tenho muito a aprender. E ainda bem que eu pensei muito, muito, sobre tudo isso.
© 2023 Liana Nakamura