Nós nikkeis herdamos uma cultura que nossos antepassados trouxeram do Japão. No caso dos meus avós, que emigraram de Okinawa, alguns dos seus costumes foram adaptados ao nosso país, enquanto outros foram preservados ao pé da letra apesar de já terem caído no esquecimento no seu local de origem. É como se o tempo os tivesse mantido congelados [no novo país]. Às vezes, eu acho que crescemos sonhando com aquele lugar ideal que eles haviam visto nas suas mentes.
Aqui no Peru temos um pequeno negócio chamado "Chawakí y algo más", criado para preparar as oferendas do butsudan (altar para veneração dos falecidos), como também outros tipos de comida. Seu propósito é a preservação dos costumes relacionados à veneração dos nossos falecidos e o preparo de alguns pratos tradicionais. Entre aqueles de nós que seguem esses costumes, muitos os praticam como foram ensinados – levando em conta que existiam variações em Okinawa. Outros optaram por simplificar as coisas; isso ocorreu porque algumas famílias viram as mais novas gerações abandonarem essa tradição devido à rigidez de alguns antepassados.
A cozinha faz parte da cultura para aqueles de nós que desejam dar continuidade às tradições. Assim sendo, procuramos conhecer um pouco mais sobre alguns dos pratos que preparamos, neste caso um doce típico da ilhazinha e que chamamos de nantu, o mochi de Uchina.
Nosso nantu é feito com farinha de arroz glutinoso (mochigo), à qual adicionamos batata doce, açúcar, missô, gergelim e corante vegetal para dar as cores. Alguns dividem as partes: a cor da batata-doce usada no nosso país está entre o ocre e o amarelo enquanto que a outra parte é tingida de vermelho, e alguns também usam a cor verde. Antigamente, quando não havia farinha de arroz, eles moíam o arroz e adicionavam água para formar a massa, a qual serviria como substituta. É necessário massagear bem e em seguida a massa é colocada em cima das folhas de sanniba, que são de gengibre (ou kion para nós). E nessa forma ela é colocada no vapor.
Como uma empresa alimentar, temos presença nas redes sociais, o que nos permitiu conhecer e nos conectar com muitas pessoas, e não apenas no nosso país. Ao postar o nosso nantu, uma nikkei argentina se surpreendeu de como era colorido o nosso doce, o qual no seu país e na sua comunidade não era preparado daquele modo. Ela até me disse que nem em Okinawa era assim. Ao investigar, me deparei com uma surpresa: o nantu que comemos no Peru não era igual ao de Okinawa.
Buscando informações, descobri que eles o fazem com missô, açúcar mascavo e pasta de amendoim (jimami, o que significa “amendoim da ilha”), e que é coberto com sementes de gergelim. Tem também aqueles que são feitos com batata-doce roxa ou taro (taanmu em uchinaguchi). Ao passo que nós os colorimos com corantes vegetais, os deles eram de uma única cor: alguns marrons por causa do missô, outros roxos por causa da sua batata-doce, diferente da do Peru. Em Okinawa há uma infinidade de variações desse doce, com o uso de manga, abóbora e fruta-do-dragão (pitaia). Além disso, a massa toda é enrolada com as folhas de sannin, enquanto a gente as coloca só por baixo.
Eu gostaria de encontrar uma explicação do porquê o nosso nantu é diferente daquele que se come em Okinawa. A primeira coisa que me vem em mente é vê-lo quando eu era criança, aquele bolinho bem colorido que quando você colocava na boca parecia chiclete, com uma doçura acompanhada de um cheiro diferente que a folha dá, e que você podia comer e não apenas mascar. Doce que faz parte de qualquer festa na nossa casa, na de parentes, amigos ou conterrâneos, chamando atenção pelas suas cores – vermelho com ocre e às vezes com verde. A cor ocre é por causa da batata-doce que temos no nosso país e a vermelha, acredito, é por ser uma comemoração.
Inicialmente, a maioria dos imigrantes se dedicou à agricultura, e alguns permaneceram no campo; naquela época não havia farinha de arroz glutinoso que a modernidade nos trouxe. A batata-doce não era a mesma do seu local de origem, daí a cor diferente; possivelmente, quando usada nas festas ela era complementada com cores chamativas. Mas a grande incógnita é o porquê da prática ter sido adotada desta forma em todos os lares nikkeis do Peru; isso me faz supor que a nossa comunidade sempre foi centralizada, com a maioria se agrupando em associações, clubes, e grupos de conterrâneos de Okinawa, os shimanchu (em Okinawano, “oriundos da mesma cidade”), localizados em Lima, a capital do Peru.
Em alguns bairros era comum ver famílias nikkeis com negócios muito perto uns dos outros. Naquela época, também era o caso que no campo os seus terrenos eram vizinhos – nós os chamamos de chacras (termo usado na América Hispânica, derivado do quíchua chakra [“chácara” em português]) – e por isso muitas famílias nikkeis se reuniam em festas. Além disso, tanto no trabalho quanto em alguma ocorrência, os conterrâneos, vizinhos, amigos e parentes se uniam para ajudar uns aos outros.
Os homens se encarregavam de arrumar o local que iria abrigar todos os participantes; para criar as mesas, grandes tábuas eram montadas sobre cavaletes e ao seu lado colocavam longos bancos de madeira. Enquanto isso, as mulheres, na cozinha, se encarregavam de preparar toda a comida. Um dos doces que faziam era o nantu; improvisando panelas, elas botavam água no fundo de algumas latas de leite vazias e sobre estas empilhavam em bandejas todo o nantu que coubesse por vez; os doces eram então cozinhados no vapor. Dizem que mesmo de uma certa distância era possível sentir aquele cheiro característico que saía dessas "panelas"; de acordo com a crença na pequena ilha de Okinawa, esse forte cheiro afastava os maus espíritos.
Na “Chawakí y algo más” o nantu é muito importante para nós. No Peru, quando começou a pandemia, foram formados grupos no Facebook para que se pudesse comprar e vender produtos; estes foram formados por nikkeis e todos aqueles que, mesmo sem serem nikkeis, aceitavam fazer parte da nossa comunidade. Desta forma nos ajudamos mutualmente. Lembro de uma pessoa perguntando quem vendia nantu; alguém nos havia recomendado, mas naquela época não podíamos fazer, pois não tínhamos as folhas de sannin. Eu tive que pedir desculpas em nome da nossa empresa. O que se seguiu à minha resposta foram várias pessoas se oferecendo para me dar a folha para que pudéssemos preparar o nantu; eu nunca tinha pensado que outros nikkeis fossem me oferecer algo assim para o nosso proveito.
No final, a pessoa que perguntou sobre o nantu me ofereceu as folhas, e até a planta, para que eu pudesse plantá-la no meu jardim. Como não tínhamos um, a colocamos num vaso; mais tarde, outras pessoas também nos deram a planta e por isso hoje, vendo-as em casa, crescendo e aumentando, acho que representam a solidariedade nikkei em tempos difíceis como a pandemia. E por isso acredito que ela nos trouxe o melhor de cada pessoa e da nossa comunidade.
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O nosso Comitê Editorial selecionou este artigo como uma das suas histórias favoritas da série Itadakimasu 3! A Comida, Família e Comunidade Nikkei em español. Segue comentário.
Comentário de Javier García Wong-Kit
Escolhi este artigo porque encontrei nele uma valiosa contribuição do ponto de vista histórico, familiar e científico. Através deste prato essencial da cozinha japonesa e nikkei, é possível entender a importância da alimentação no processo migratório, especialmente dos japoneses na América Latina e das suas origens na ilha de Okinawa. Acho que podemos aprender muito lendo esta história, não apenas sobre o Japão, mas também sobre o que está acontecendo no Peru; além disso, temos a chance de se informar sobre a união da comunidade nikkei por meio das suas tradições, e do valor que pode ter a preservação dos costumes ao se iniciar um negócio familiar – como muitos dos que existem entre os nikkeis do mundo.
© 2022 Roberto Oshiro Teruya
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