Sempre que me lembro de momentos entre meu avô e eu, sinto cheiro de pastel e refrigerante. Íamos à feira aos sábados, perto de sua oficina. Ele comprava pastéis, um para mim e um para ele, me dava um afago nos cabelos, sorria e compartilhávamos a refeição. Eu era pequena e desde então eu aprendi que o meu avô dizia “eu te amo” em silêncio, mas era quase dito de maneira soletrada, enquanto o seu sorriso se abria e seus olhos se fechavam.
“Seu avô é quietinho assim, porque é japonês”, era o que eu geralmente ouvia quando criança e naquela época, num pensamento simples, cheguei a julgar que o Japão era uma nação silenciosa. Imaginava templos, florestas, montanhas de silêncio, completava com o que a imaginação me permitia e assim transformava aquilo em experiência e contava para os colegas de classe. "No Japão, todo mundo é assim”, e todos concordavam porque, no fundo, crianças de 5 ou 6 anos não saberiam dizer a distância entre o Japão e Pindamonhangaba.
Com os anos, passei a refletir sobre o que o silêncio do meu avô carregava. As dificuldades de ser nikkei, o casamento com uma brasileira que lhe custou a harmonia entre os familiares, a tatuagem que eu nunca soube como chegara ali em seu braço, se era feliz ou se era triste. Será que gostava de ser avô? E quem será que ele era como homem? Gostava de futebol, mas mais o que? O que construiu e constrói o seu caráter?
Vivendo em uma família de pais divorciados, nunca pude compreender por completo o que é crescer nikkei. Não tinha amigos com famílias japonesas, não participava de undokais, a primeira vez que ouvi taiko foi em um evento automotivo com apresentações de uma marca renomada. Eu me sentia estrangeira a algo que me deveria ser tão familiar.
Meu avô nunca sentou comigo para dizer como se sentia no Brasil ou o que sentia sobre o Japão, por isso eu mesma nunca soube o que sentir sobre os dois. Nunca falamos em japonês um com o outro, como em outras famílias tão tradicionais. Minha avó nunca fez para mim um bento e nunca discutimos religião, apesar de eu sempre ver uma figura de Buda em seu altar. Talvez essa desconexão que eu senti por muitos anos, ele sinta até hoje.
Foi apenas na vida adulta, que esse pedaço que faltava passou a ser essencial para que eu pudesse compreender melhor quem eu sou. A minha forma de pensar, de agir, o meu corpo que parecia tão diferente do padrão brasileiro, o meu cabelo sempre tão cheio e que eu sempre relutei em gostar, eu passei a ver tantas mulheres fortes okinawanas tratando com tanto carinho.
A desconexão com os padrões da igreja católica e o encanto com a sabedoria matriarcal da religião ryukyuana. Poderíamos nos sentar e conversar, só eu e o meu avô e eu teria tanto para perguntar, tanto para dizer, tantas experiências me vinham à cabeça. Eu penso sobre isso toda vez, e que isso deveria ser urgente, já que não sabemos quanto tempo temos nesta vida.
Mas então, lá estou eu ao lado do meu avô de novo. Agora, entre nós, se senta a minha filha pequena e eu volto para aquele mesmo lugar da minha infância. Acredito não estar enganada, mas não sou a única mulher amarela que conhece este lugar confortável, este silêncio entre gerações. Agora ele diz "eu te amo" para a minha pequena, do mesmo jeitinho que fazia para mim: sorriso grande, olhos pequenos e ela responde da mesma forma, sorriso grande, olhos pequenos e em silêncio.
© 2023 Thais Okubaro
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