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https://www.discovernikkei.org/pt/journal/2018/9/28/sharing-heart-beats/

Compartilhando batidas do coração

*Nota do Tradutor: O texto abaixo foi escrito por um transgênero, Mori Walts, que se considera “não-binário” – ou seja, sem gênero específico. Por essa razão, no lugar de “o” ou “a” foi usado o símbolo “@” quando em direta referência a Walts.

(Aviso: No texto abaixo é discutido abuso de crianças e suicídio)

Hoje em dia eu falo com a minha avó, irmãos mais novos e um primo – e ninguém mais da minha família biológica.

Eu rompi os laços com o meu pai branco duas vezes. A minha mãe e ele são interligados demais.

Recentemente eu encontrei com ela numa loja de donuts e falei publicamente: “Eu não posso confiar em você, mas eu te amo.”

Foi o momento quando me senti exaust@ para continuar a ser tratad@ de forma condescendente, como o nosso relacionamento havia sido até então. Eu tenho vontade de amadurecer e me sentir curad@, mas para ser sincer@ nunca sei dizer se estou fazendo as coisas da maneira certa. Sei que essa situação é pouco comum, e apesar de estar vivendo dentro da minha própria experiência, o fato de eu estar ciente do radicalismo desta decisão me arranca para fora do corpo.

Espero que um dia eu possa encontrar uma maneira de ter um relacionamento saudável com os dois.

Quando eu era pequen@, antes dos meus pais se separarem por um breve período, tinha um incrível quimono laranja e verde com bordados brilhantes pendurado numa parede da nossa casa no subúrbio. Perto dele se encontrava uma estante de madeira compensada de duas prateleiras contendo enormes sandálias geta de madeira, assim como também dois bules de cerâmica com alças de bambu e uma caixinha de perucas de bonecas. Para mim, essas eram coisas de adulto; sandálias literalmente grandes demais para que eu pudesse calçar. Mesmo assim, eu as botava no nosso esquisito carpete no estilo dos anos 70 e subia nelas tentando me equilibrar como se fosssem duas rochas das quais eu não queria cair. Um dia eu me tornaria adult@. Visualmente, o quimono era tão grande que ele ocupava a parede inteira e os meus olhos não conseguiam captar a totalidade dos seus tecidos. Assim sendo, eu me perdia nos ambientes descritos nas suas rendas texturizadas.

Durante as visitas na casa da minha avó Takae, ela nos acordava às seis. O café da manhã com aveia, frutas e nozes era servido, e em seguida ela nos fazia andar três quilômetros ao seu lado. Aí então, a gente voltava para casa e passava o fim de semana ajudando ela a regar, remover ervas daninhas e fazer a colheita; queimar pilhas de redwood (metasequoia) e outros tipos de lixo orgânico três vezes o nosso tamanho; levar os restos de comida para a compostagem; e todas as noites, entrar nu@ na sua banheira de água quente. Gratidão eterna por ter desfrutado dessas experiências na minha vida.

Memórias inconfortáveis da infância, agora que já me tornei “adultizad@”, são balanceadas com palavras do vocabulário que têm a minha permissão para o seu uso. Já me disseram que não sou japones@, mas geralmente as pessoas me vêm com esse tipo de comentário quando faço uma pergunta séria sobre as dinâmicas do poder ou quando estou segurando uma lanterna na direção de algo feio. O Tio Ory, que era o irmão mais novo do vovô e o homem que a vovó cuidava depois da morte do vovô, lançava insultos quando ela deixava queimar a comida ou quando os pratos eram demasiadamente japoneses e não suficientemente americanos, dizendo que era “comida de gato” – apenas um exemplo tirado de um enorme baú de memórias com muito do mesmo: ocasiões com cômodos cheios de adultos rindo e o meu silêncio constrangedor. Hoje, com segurança, posso chamar aquilo de racismo e dizer abertamente para a vovó o quanto adoro a sua comida – sabendo, por ter falado com ela, que um montão de vezes fizeram com que sentisse o oposto.

Depois do campo de internamento [para japoneses/nipo-americanos durante a Segunda Guerra Mundial], a vovó foi embora d[o campo de internamento de] Tule Lake [na Califórnia]. Aos 13 anos, morou com uma família branca, trabalhando como faxineira e babá, e recebendo como pagamento refeições e um lugar onde dormir. O seu pai, Mitsumasa, só podia cuidar da sua irmã mais nova, a minha tia Tsuk. O fato de eu estar ciente do quanto o campo de internamento moldou a nossa família, proporciona um contexto para a violência, manipulação emocional e eliminação do passado que marcaram a minha infância. Também dá contexto aos sucessos dela, os quais me permitem continuar a lutar para realizar os meus sonhos.

Hoje eu moro com uma pessoa amiga e sua família biológica. Somos sete num apartamento de três quartos. Na nossa família, é admissível ser crítico. É admissível ser bobo. É admissível deixar a comida queimar e saboreá-la assim mesmo. É admissível ser uma pessoa machucada e botar os sentimentos para fora. É admissível assistir anime e analisá-lo tanto micro quanto macroscopicamente. Para agir de forma considerada, utiliza-se o conceito de enryo [hesitação/auto-controle]: quietude e espaços pessoais são respeitados e aceitos. Ao mesmo tempo, a forma de se expressar de algum outro membro da família podem ser piadas desdenhosas de sacudir a casa e feitas em auto-defesa contra a loucura que havia sido jogada na sua direção anteriormente. Ou talvez seja um denso absurdo, quente como uma estrela, explodindo com energia.

Sem a minha família, eu seria um transgênero aprisionado, sem os pés no chão, emocionalmente manipulado, um sobrevivente de abuso infantil familiar e de uma lesão cerebral traumática. Sem a minha família, eu ainda acreditaria que o único caminho para a paz seria a inexistência. Posso dizer aqui e agora que as vidas dos negros têm valor? Pois estou dizendo isso agora. Os negros geram amor que frequentemente passa despercebido e sem o devido reconhecimento. No caso da minha família – negra, mexicana e pinoy [filipina] – gente negra salvou a minha vida.

Eu não poderia ser quem sou se não fosse por essas duas famílias. Eu já disse que ainda tem mais famílias?

No nosso quintal, tem um jardim. De alguma forma, berinjela, kabocha [abóbora japonesa], quiabo, couve, pimenta verde, melão, planta-jade, hibisco, tomate, abóbora, framboesa, mirtilo, o ínfame morango e outros mistérios crescem exuberantemente apesar dos nossos horários apertados e da sujeira/cacos de vidro/parafusos enferrujados no nosso quintalzinho. Uma metasequoia cresce acima das nossas cabeças. Eu alimento tudo com lixo orgânico.

A linha telefônica da vida. Uma rede de voluntários tão esquisitos quanto o conceito de gênero é esquisito para eles – como para mim. Quando eu voltei a morar com uma família, eu podia ligar para outro transgênero e falar sobre os meus planos de não querer mais viver. Depois disso, a gente conversava sobre outras coisas, e pensava em pensar juntos, e pensava em viver, e também pensava em morrer, e então pensava principalmente em viver. Hoje em dia, eu não permito a revelação de assuntos confidenciais, mas de vez em quando sou um desses tipos esquisitos atendendo ligações. Família telefônica.

Junto ao meu coração estão as amizades, a família que me abrigou na minha vida anterior ao acidente de carro que causou o colapso do meu já instável labirinto. Amigos criativos e de confiança que eu gostaria de ter machucado menos enquanto procurava tanto compreender quanto escapar da eliminação de mim mesmo da minha infância. Gente local cuja arte e expressões mudaram a malha social da área de maneiras mais belas e saudáveis do que muitos reconhecem. A casa da família [estilo anime] Voltron.

Os primeiros amigos adultos que fiz depois de virar uma pessoa adulta de acordo com a lei. A primeira chance que tive de fazer amizade com outros nikkeis na nossa área. Amigos alegres e solidários, que têm sido os mais gentis sempai comigo, com respeito à generosidade de vida; expressões honestas, estrondosas e suaves; e sempre mantendo o ritmo. O nosso grupo local de taiko me permitiu tocar O-daiko no passado, quando a minha lesão cerebral ainda não havia ocorrido, ao passo que a prática de ciclos eternos de vibração coloca a minha cabeça num espaço seguro que nunca pode ser destruído. Esse ciclo eterno é tão vívido para mim; ele sempre vai estar lá. O meu retorno ao taiko faz parte de um futuro pré-determinado, mas só quando consigo amplificar mais amor do que dor.

Falar de raízes significa falar de um ponto de origem. No entanto, ao pensar em quando me sinto mais nikkei, não consigo pensar em nada em particular. Tudo o que eu escuto é doko, doko, doko-n.

 

* * * * *

O nosso Comitê Editorial selecionou este artigo como uma das suas histórias favoritas da série Raízes Nikkeis: Mergulhando no Nosso Patrimônio Cultural. Segue comentário.

Comentário de Tamiko Nimura

Entre os muitos bem escritos ensaios da série, o ensaio de Mori Walts, “Compartilhando Batidas do Coração”, é envolvente na sua abordagem de uma área importante e difícil do encontro com as nossas raízes nikkeis. Dotado de uma sensibilidade lírica e de um arco narrativo corajoso, o seu ensaio passa breve mas vividamente por retratos de famílias tanto biológicas quanto escolhidas. A sua voz é sincera, clara e forte; ela continua a ecoar tempos depois das últimas notas do odaiko na frase final do ensaio.

 

© 2018 Mori Walts

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Sobre esta série

As histórias da série Crônicas Nikkeis vêm explorando diversas maneiras pelas quais os nikkeis expressam a sua cultura única, seja através da culinária, do idioma, da família, ou das tradições. Desta vez estamos nos aprofundando ainda mais—até chegarmos às nossas raízes!

Aceitamos o envio de histórias de maio a setembro de 2018. Todas as 35 histórias (22 em inglês, 1 em japonês, 8 em espanhol, e 4 em português) foram recebidas da Argentina, Brasil, Canadá, Cuba, Japão, México, Peru e Estados Unidos. 

Nesta série, pedimos à nossa comunidade Nima-kai para votar nas suas histórias favoritas e ao nosso Comitê Editorial para escolher as suas favoritas. No total, cinco histórias favoritas foram selecionadas.

Aqui estão as histórias favoritas selecionadas.

  Editorial Committee’s Selections:

  Escolha do Nima-kai:

Para maiores informações sobre este projeto literário >>

 

Confira estas outras séries de Crônicas Nikkeis >> 

Mais informações
About the Author

Mori Walts é transgênero não-binário, parte-nikkei, sobrevivente de lesões cerebrais, e tocador@ esporádic@ de taiko que cria histórias em quadrinhos sobre crescer nos tempos da Internet e o SSPT resultante das suas experiências tanto na rede quanto fora dela. Profissionalmente, Mori é terapeuta manual. Seus trabalhos artísticos visam descolonizar a mídia e a narrativa em torno da identidade nikkei, promovendo um futuro cultural e ecologicamente mais saudável capaz de se recuperar do patriarcado capitalista. 

Atualizado em setembro de 2018

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