“O origami é um meio de comunicação e expressão, uma linguagem universal que une diferentes gerações e povos em torno de uma mesma atividade.”
— Mari Kanegae
Toshi veio para o Brasil num pássaro de papel.
Quando sua neta, nascida na tão longínqua cidade de Londrina, foi até o Japão para conhecê-la, ela se deu conta de que teria que renunciar às palavras para conversar com a pequena menina. Dobrou um tsuru. Certamente não imaginava que o laço que ali nascia atravessaria os oceanos e o tempo.
Mais de duas décadas se passaram. Mari, agora uma artista plástica, não se lembrava desse episódio. Ao longo dos anos, foi angariando experiências esparsas com as dobraduras, até que um dia estas lhe revelaram o que de mais forte ela carregava dentro de si: o desejo de criar elos entre pessoas. Decidiu aprofundar-se na arte do origami no país de sua avó. Era o tsuru querendo fazer o caminho de volta.
Lá, no tão longínquo Japão, o acaso providenciou seu encontro com o grande mestre Toyoaki Kawai. Acompanhando por um ano a sua rotina captou as sutilezas do origami e do ser artista. “Com ele aprendi que um origamista tem que ser um bom observador. Olhar tudo que está à sua volta, principalmente a natureza. E a partir daí, interpretá-la através do papel.”
Voltou outras vezes para encontrar outros mestres e nunca mais interromperia esse ir e vir. Ainda hoje, sobrevoa os oceanos com grupos de brasileiros para conduzi-los pelos caminhos do origami. O tsuru nunca mais aquietou. Visitou outros lugares do mundo para aprender e ensinar. “A minha história não tem fim. Continuo aprendendo, ensinando e aprendendo.”
Uma rápida busca sobre seus feitos revela de pronto a importância que ela adquiriu na divulgação dessa arte no Brasil. Obras individuais e coletivas que levam o seu nome encontram-se espalhadas por cidades brasileiras e japonesas. É autora e coautora de livros de origami em português. Ministra palestras corporativas e workshops e é vista com frequência em programas de televisão. A Internet é caudalosa em referências suas.
A despeito da repercussão, é no contato íntimo com os alunos que o seu trabalho se constrói e ganha consistência. Sua aulas, que divide entre seu ateliê, a Aliança Cultural Brasil-Japão e o voluntariado, extrapolam o ensino da técnica. Atendem a uma busca constante de transmitir os conteúdos mais profundos do origami. Como paciência e perseverança, que transparecem nas dobras e lentamente vão inundando o ser do praticante.
Dos vínculos criados em aulas, emergiram emblemáticos trabalhos coletivos. Sob sua coordenação, o Grupo de Estudos de Origami – GEO, formado por ex-alunos, executou obras com características singulares.
“A Imigração Japonesa no Brasil” retrata cenas do cotidiano vivenciado pelos imigrantes japoneses no início do século XX, mostrando algumas das influências na sociedade brasileira. Percorrendo cidades brasileiras e depois levada ao Japão, foi vista por milhares de interessados. Para a artista, seu grande êxito foi, primeiro, reunir pessoas em torno de um mesmo interesse no processo de criação e execução da obra. Depois, tocar a sensibilidade daqueles que se viram retratados, como a imigrante que ria ao contemplar as galinhas que lhe remexeram as memórias, e, do outro lado, daqueles que não faziam ideia da realidade retratada. Como a cadeirante idosa que, no Japão, comoveu-se ao constatar as dificuldades vividas pelos conterrâneos expatriados.
Já a obra “Carnaval em Origami”, executada pelo mesmo grupo para participar das comemorações do centenário da imigração japonesa em 2008, demandou enorme esforço coletivo. Composta por milhares de peças, representa fielmente uma escola de samba desfilando com o tema “Brasil”, com alas representando as diversas regiões do país. Levou dez anos para ser concluída.
São apenas exemplos de uma história movida por encontros entre pessoas, gerações e culturas. Uma história que merece ser trazida porque retrata com transbordamento o que é preservar raízes e adaptá-las aos tempos e lugares. “Comer oniguiri com farofa”, ela resume.
Com seus olhos amendoados e seu afeto escancarado, Mari segue criando elos e ressignificando o tsuru.
O tsuru é nikkei.
Mari é nikkei. Caminha com as vicissitudes de herdar uma cultura ancestral e viver em outra. Acolhendo dentro de si a coexistência de valores e costumes distintos, seu trabalho com origami sincretiza essa dualidade em harmonia e transforma a sensação de não estar aqui nem lá, na sensação de estar aqui e lá.
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O nosso Comitê Editorial selecionou este artigo como uma das suas histórias favoritas da série Raízes Nikkeis: Mergulhando no Nosso Patrimônio Cultural. Segue comentário.
Comentário de Célia Sakurai
Raízes, na sua maior parte, estão enterradas, mas não mortas. Elas são responsáveis para buscar nutrientes que dão vida à planta. A parte visível se revela pelas folhas, flores, frutos. Podemos fazer uma analogia com as questões culturais. As raízes não estão mortas, mas renovam, dão vida, colorido. Os artigos apresentados demonstram a variedade de frutos que as raízes podem mostrar. São quatro histórias que buscaram trazer à luz o quanto as nossas raízes japonesas estão presentes modificando-se, renovando, criando sem deixar a matriz que a inspirou. Pode ser na memória de personagens como Ryu Mizuno, no moti, na música, nas dobraduras de papel.
O trabalho de Heriete Shimabukuro Takeda, “Atravessando o mundo” foi o selecionado porque sintetiza muito bem como as raízes de origem japonesa estão em movimento procurando nutrientes locais para dar uma vida nova a uma arte tradicional como o origami. A artista brasileira Mari Kanegae consegue mesclar a arte da avó japonesa com temas brasileiros como a escola de samba. A exposição da trajetória da artista é apresentada por Heriete Takeda de forma a mostrar que o novo e o antigo convivem harmonicamente inspirando e sugerindo novidades sem deixar de lado tradições ancestrais.
© 2018 Heriete Takeda
Os Favoritos da Comunidade Nima-kai
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