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Como eu descobri que era uchinānchu

Javier quando tinha 5 anos

Eu morava tranquilamente com os meus avós na quadra 11 da Avenida Arnaldo Marquez no bairro Jesus Maria([em Lima,] onde “quem não tinha um pouco de inga, tinha de mandinga1”), quando os meus pais decidiram me enviar para a escola. Foi só entrar em Jishuryo (Colégio Santa Beatriz) parame ver de repentecercado de “chinos2”, o queme deu um choque tão grande quedemorou para eu me recuperar. (Até então, todos os meus amigos, apesar das advertências da minha obāpara que eu não me misturasse com os “dojin3”, tinham sido peruanos.)

Pouco depois de entrar na escola, durante um dos recreios, eu não me lembro do que estávamos falando, mas teve uma hora que eu usei a palavra“jōri” (me referindo às sandálias que no Peru são chamadas “sayonaras”) e o garoto com quem eu estava conversando parou e ficou olhando para minha cara.

— Você ouviu essa? — perguntou o meuchocado interlocutor a outro amigo, enquanto apontava para mim. — Ele disse “jōri”!

— “ri”? — O outro exclamou, achando estranho.

E os dois caíram na gargalhada. Eu não sabia do que estavam rindo. Então, o primeiro, me lançando um olhar severo de desaprovação, disse:

— Não se diz “jōri”. É “ri”!

Eu tinha sido criado pelos meus avós maternos e na sua casa eles sempre diziam “jōri”; eu tinha certeza disso. Senti algo parecido com o que devemter sentidoos“recém-descidos4” das serras logo depois de chegarem em Lima, quando se tornam alvo de piadas por causa do seu “jeitoíndio” de falar.

Apesar de já estar morando com os meus pais, eu passava todos os fins de semana na casa dos meus avós. Naquele sábado eu perguntei para a minha obā e ela, antes de responder, me perguntou como os garotos se chamavam. Eu respondi e ela exclamou:

— Ah, eles são naichā!

Como eu não entendi, ela explicou:

— Nós somos uchinānchu5,de Okinawa, e eles são naichā, de Tóquio. Por isso eles falam mais bonito. (Foi como ela me disse; não que eles falassem outra língua, mas sim que falavam “mais bonito”.)

Foi assim que eu descobri que era uchinānchu.

Família materna de Javier

A partir de então, todo fim de semana, enquanto eu, orgulhoso, demonstrava o meu progresso em nihongo, ela me dizia, de acordo com os sobrenomes, quais dos meus colegas eram meus compatriotas e quais eram naichā. Se ela tinha algo contra osnaichā, eu nunca fiquei sabendo. Ela nunca inculcouem mim ódio ou rancor contra eles, mas parecia aceitar com uma espécie de triste resignação que eu estava me “naichicizando”.

Na escola, havia gente proveniente de todas as partes do Japão, mas acho que a maioria era de Okinawa; nós não falávamos sobre essas coisas. Depois de estudar mais de dez anos juntos, acabamos formando um grupo bem chegadono qual foram forjadas grandes e belas amizades, sem importar o local de origem dos nossos pais ou avós.

Por essa razão, durante muito tempo eu nem estava consciente nem dava importância ao fato de que eu era uchinānchu. Nem mesmo quando, em 1989, “sob os auspícios do Alan García6”, eu cheguei no Japão. Então era esta a terra dos meus antepassados? Não parecia. Eu não gostei da fria cortesia dos japoneses nem do comportamento robotizado dos operários nas fábricas; não fiquei impressionado com a sua infraestrutura moderna e nem gostei dos invernos frios ou da sua comida.

Somente quando, alguns anos mais tarde, fui pela primeira vez a Okinawa e senti o seu calor e conheci as suas praias de areia branca, mar azul-turquesa e céu azul celeste; somente quando reconheci nas ruas os mesmos rostos dos ojisanes e obasanes do Peru e seu andar relaxado e despreocupado; somente quando vi as suas casas com a pintura lascada pela umidade como aquelas em Callao; somente quando o soki soba, o gōyā champurū e os sātāandāgī me lembraram daqueles que a minha obā preparava; somente quando a música e as danças me lembraram do rebuliço do meu ojī e dos seus amigos quando eles ficavam bêbados e caíam na dança acompanhados por altos assobios; somente então senti que eu havia “regressado”.

Eu também me dei conta que um rosto mais tipicamente okinawano do que o meu, só mesmo o dos shisa. Não sei o quanto tenho de peruano ou deokinawano. O que sei é que não tenho nada de japonês (o que me deixa feliz).

Às vezes me pergunto como teria sido a minha vida se ao invés de ter nascido no Peru eu tivesse nascido em Okinawa. Será que eu estaria em Kumejima cultivando cana-de-açúcar como os meus tios e primos, ou será que teria ido como dekassegui para naichi, e agora estaria trabalhando como denkiya em Tsurumi [Yokohama], me embebedando nas noites de sábado num dos bares de Little Okinawa?

Notas:

  1. A expressão se refere aos nativos de Lima, querendo dizer que têm raízes indígenas [inga, povo indígena relacionado aos incas] ou africanas [mandinga, em referência aos povos do Golfo da Guiné].
  2. No vocabulário popular, chino se refere a uma pessoa de origem asiática.
  3. Nativos.
  4. Migrante das serras para a costa peruana.
  5. Pessoas de origem okinawana.
  6. Referência à crise econômica durante o primeiro governo do presidente Alan García.

© 2016 Javier Takara

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Sobre esta série

Arigato, baka, sushi, benjo e shoyu—quantas vezes você já usou estas palavras? Numa pesquisa informal realizada em 2010, descobrimos que estas são as palavras japonesas mais utilizadas entre os nipo-americanos residentes no sul da Califórnia.

Nas comunidades nikkeis em todo o mundo, o idioma japonês simboliza a cultura dos antepassados, ou a cultura que foi deixada para trás. Palavras japonesas muitas vezes são misturadas com a língua do país adotado, originando assim uma forma fluida, híbrida de comunicação.

Nesta série, pedimos à nossa comunidade Nima-kai para votar nas suas histórias favoritas e ao nosso Comitê Editorial para escolher as suas favoritas. No total, cinco histórias favoritas foram selecionadas.

Aqui estão as histórias favoritas selecionadas.

  Editorial Committee’s Selections:

  • PORTUGUÊS:
    Gaijin 
    Por Heriete Setsuko Shimabukuro Takeda

  Escolha do Nima-kai:

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About the Author

Descendente de okinawanos, Javier Takara (pseudônimo) é um nikkei sansei nascido em Lima em 1965. Seus avós paternos eram de Kumejima e os maternos de Itoman. Em 1989, ele foi como dekassegui para o Japão. Atualmente reside na cidade de Zama, na prefeitura de Kanagawa. Escreve no seu blog: elblocdejaviertakara.blogspot.com. 

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