“Parabéns, Bisa, pelo seu aniversário” e vovó AIKO sorridente recebe, de cada uma das bisnetas, um abraço apertado e um beijo carinhoso dado no rosto expressivo, mas um tanto cansado pela idade. Festejou-se em janeiro último o aniversário de 102 anos da D. AIKO, matriarca da família Higuchi.
O evento de confraternização deveria ter ocorrido em 2021, quando ela efetivamente completaria 100 anos. A tão significativa data foi até lembrada à época pela Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa e de Assistência Social (Bunkyo) e pelo governo japonês, através do Consulado Geral do Japão em São Paulo, que a agraciaram com o Diploma de Honra ao Mérito.
Infelizmente, a pandemia da Covid impediu a realização do aguardado evento. A família tinha planejado com capricho um encontro festivo à altura do acontecimento. Afinal, não se comemoram 100 anos de vida a qualquer momento! Havia sido reservada uma linda chácara nas cercanias da Capital, para a qual seriam convidadas aproximadamente 150 pessoas, entre os parentes mais próximos e amigos, inclusive aqueles residentes no Interior. Uma festa para durar o dia inteiro. Tudo para que D. AIKO pudesse reencontrar as pessoas queridas, as quais não via há muito tempo. Mas nada disso aconteceu, infelizmente!
Neste ano, porém, os filhos de D. AIKO não economizaram esforços para que a data não passasse em branco, mesmo que a comemoração tivesse que ser menor e mais simples. E foi o que aconteceu! Para poupar o deslocamento de parentes que moravam no interior, foram convidados apenas os primos e sobrinhos residentes na Capital. Mesmo assim, D. AIKO foi cumprimentada por quase 60 pessoas, parentes e amigos, que levaram seu abraço e carinho, ao mesmo tempo que puderam rememorar os laços que os ligam à ilustre senhora que acabou se tornando uma referência na família, não apenas pela longevidade, mas por seu exemplo de luta, sacrifício, dedicação e resiliência.
Diante de sua linda família, reunida e unida ao seu redor e, destacando a presença de seus cinco filhos, todos já com visíveis cabelos grisalhos e desfrutando de suas aposentadorias, na cabecinha de D. AIKO deve ter passado um turbilhão de pensamentos, como se fosse uma linha do tempo, na qual a sua vida foi se desenrolando como um filme em branco e preto.
Desde a sua chegada ao Brasil, em 1927, uma menininha de apenas 6 anos, que aportara no Porto de Santos, na companhia de seus pais e irmãos, menores ainda. Família que deixou a terra natal arrasada pela guerra, em fuga para o Brasil, a Terra do Ouro e da Esperança. Brasil que, entretanto, mostraria uma outra face, muito diferente do que todos sonhavam e acalentavam. Sonho que acabou se tornando uma verdadeira epopeia, à custa de muitas lágrimas, suor e sacrifício. Uma verdadeira saga, como foi a vida da maioria dos imigrantes japoneses daquela época.
De D. AIKO não foi diferente. Talvez, até mais dura e impiedosa. Um lamentável episódio ocorrido em 1946 a marcou profundamente quando, recém-casada, com um filho de 1 ano no colo, foi informada da morte de seu pai, IKUTA MIZOBE, então diretor-gerente da Cooperativa de Bastos. Ele foi a primeira vítima da inconsequente ação dos Shindo-Reimei, nacionalistas radicais que faziam parte da comunidade japonesa da região de Bastos e Tupã. Trauma e revolta que carregou durante anos, só amenizada uns vinte anos atrás, com o pedido de perdão de parentes (filha e neta) do responsável por tamanha dor.
Nesse momento, D. AIKO sente um aperto no coração, ao mesmo tempo que é tomada por uma profunda saudade, sentindo uma falta imensa do marido Tetsuo. “Gostaria muito que ele estivesse aqui, ao meu lado, nesta hora! Com certeza estaria radiante, feliz, na presença dos filhos, noras, netos e bisnetas – bisnetas que ele não chegou a conhecer, nenhuma delas. Que pena! Vendo-as, todas lindas, com certeza afirmaria que as meninas puxaram muito à família Higuchi (rsrsrs). E, como ele reagiria na companhia dos demais netos, netas, sobrinhos e sobrinhas, que ele ainda viu nascer, crescer e hoje, todos casados?”. Os olhos de D. AIKO ficam marejados. Ela se emociona fácil.
Seus pensamentos nostálgicos continuam e ela se lembra que é a única sobrevivente de sua família. Daquele grupo de sete pessoas que aportou em Santos – pais e cinco filhos – só restou ela. Todos já deixaram este plano, mesmo os irmãos mais novos. Ficou literalmente só e isso a tem amargurado nos últimos tempos. É tomada por pensamentos negativos, de desânimo.
“Acho que já cumpri minha missão nesta vida. Fiz tudo que era possível, as minhas obrigações e bem-feito. Me sinto em paz! Consegui fazer que todos os meus filhos, apesar das dificuldades que passaram, estudassem e se formassem. E desenvolvessem uma carreira profissional exitosa. Mais ainda, que constituíssem lindas famílias, unidas e sem nunca terem esquecido o ensinamento que sempre procurei passar para eles: o da harmonia entre os irmãos e o espírito de família que deve existir entre eles. Sempre juntos e um ajudando o outro! Não está bom?”, afirma para si mesma, concordando ... com um sorriso maroto.
Seus sonhos são interrompidos pelos alaridos ao redor; são as pessoas que a chamam para a seção de fotos. “Vó, venha até aqui para tirar fotos com os convidados!” Todos querem uma foto exclusiva com a vovó. “Agora, só com as bisnetas! Depois, com os netos e netas! Com os filhos e noras! Com os sobrinhos e primas!” E tantas outras, que os seus olhinhos, cada vez mais pressionados pela idade, não conseguem dar conta, tamanha as poses que é obrigada a fazer.
A convivência com tantas pessoas e ela sempre teve essa facilidade de interação, seja com crianças, jovens ou adultos, e ainda mais diante da presença das bisnetas que tanto amor lhe dedicam, faz D. AIKO se dar contaque a sua missão nesta vida irá se prolongar por mais tempo.
Afinal, a Sofia Valentina está chegando e ela precisará estar em forma para conhecer a mais nova bisneta. “Preciso correr para terminar o tricô, se não o casaquinho para a Sofia não ficará pronto a tempo”.
“Edith, por que não fomos visitar a Camila ainda? A Sofia Valentina já deve estar grande! “Mãe, mas ela nem nasceu ainda!”, responde Edith, a filha caçula da D. AIKO.
Essa é a bisa AIKO, aos 102 anos, do jeito que sempre foi! Intensa, autêntica e comprometida! Uma figura inesquecível!
© 2023 Katsuo Higuchi