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O caçula

Dias atrás, na EMEF José Dias da Silveira (Vila Cordeiro, São Paulo/SP), uma professora, colega de profissão, pediu-me que escrevesse uma poesia para ser apresentada num sarau, na própria escola. O foco do assunto seria os imigrantes japoneses. Ela até me perguntou se meu pai era japonês. Eu disse que sim. Conversando, nós resolvemos que eu abordaria uma temática pessoal sobre os imigrantes em forma de soneto; visto que a apresentação no sarau seria feita por um aluno, também descendente de japoneses. Sabemos que no soneto contamos com somente quatorze versos, além das rimas; o que facilitaria a declamação. Esta era a minha opinião. Então, assim eu fiz.

IMIGRANTES

Eu nasci no Brasil, sou brasileiro
Mas, meu pai veio do oriental Japão
Com onze a idade, em prol da imigração.
Viagem por mar, um sonho aventureiro

De meu avô e família. Busca então
De nova pátria, novo lar, dinheiro
E, quem sabe, um tesouro alvissareiro
Para poder voltar ao seu rincão.

Como outros imigrantes se adaptaram
À nova pátria. Meu pai cresceu, casou
Formou filhos e jaz neste Brasil.

Parabéns imigrantes que ficaram
Nesta Terra Brasilis que abrigou
Gentes várias, nações e sonhos mil!

(SP, 13 de junho de 2016)

O aluno que apresentou o soneto se saiu muito bem, foi muito elogiado pelos colegas professores e por aqueles que participaram do sarau. Eu não participei do sarau, mas fui inteirado dos acontecimentos.

Inspirado nas ocorrências, resolvi aproveitar o ensejo e escrever sobre um dos integrantes da minha família. Escolhi o que considero o mais brasileiro dos tios da parte paterna, justamente, o caçula. Registrado como João Issamu Matsuda. Tinha nome em português, coisa que os seus outros irmãos não tinham. E um nome japonês que não começava com K como o meu avô, meu pai, outros tios e meus irmãos.

Da esquerda para a direita: meu tio João Issamu, eu (Osvaldo Matsuda), meu avô, minha avó, minha mãe com minha irmã, meu pai com meus dois irmãos.

Nascido em cinco de novembro de mil novecentos e quarenta (05.11.1940) em Itariri/SP. Morreu no dia 26 de junho de 1989 (uma segunda-feira) em Miracatu, coincidentemente, no dia em que eu aniversariava. Lembro-me que minha mãe ligou neste dia, após duas horas da tarde e falou que o tio havia sofrido um acidente. Fora atropelado por um veículo ao tentar atravessar a rodovia, à frente da nossa casa, mas não parecia ser grave. E rapidamente minha mãe me parabenizou pelo aniversário. Foi estranho. Antes de desligar, minha mãe disse que me manteria informado dos acontecimentos.

Algum tempo depois, ela ligou novamente (meu irmão atendeu) informando que meu tio faleceu no hospital. Muita tristeza. Era jovem ainda, não completou os cinquenta anos. No dia seguinte participei do velório e do enterro. Ali deitado no caixão ele tinha uma boa aparência, pois estava levemente rosado e parecia sorrir. Parecia uma criança grande. Havia um número considerável de pessoas.

Estranhei porque em vida este tio não parecia ser tão estimado assim. No entanto, este acontecido, somado a uma perspectiva pessoal de mudanças, meus pais (já avançando na idade) sozinhos no interior (este tio era o parente mais próximo nesta cidade interiorana) e alguns outros fatores foram determinantes para que, ao final daquele ano, eu me transferisse para a cidade de Miracatu. Mas esta é outra história...

A última vez que encontrei meu tio ainda vivo, naquele ano de 1989, ele parecia uma pessoa doente, notava-se que estava fora de sintonia, mas quando fazia contato conosco, sorria humildemente. Disseram-me posteriormente que ele fazia uso de medicamento bem forte. Não seria a primeira vez...

O seu último sumiço foi possivelmente o mais longo. Acredito que ficou sem contato com a família por anos. Soubemos que ele fez de tudo para sobreviver. Foi flanelinha, pedinte, morador de rua entre outros. Às vezes ficava internado em hospitais psiquiátricos da grande São Paulo como Juqueri e Franco de Rocha e nesses períodos ele era submetido a tratamentos traumatizantes como eletrochoques. Estas ausências eram os desencontros culturais, sociais, familiares e necessidades de cuidados (médicos ou não).

Meu tio era diferente. Era especial. Ele não era violento. Conseguia até trabalhar durante algum tempo. Em alguns momentos precisava de medicamentos para se manter rotineiro. Em outros ficava sem tratamento. Em outros ainda sumia de vista por algum tempo e quando encontrado e tratado, era trazido para Miracatu.

Embora eu tenha morado na cidade de São Paulo de meado da década de 1970 em diante, raramente encontrei meu tio por lá. Encontrava antes, quando eu era adolescente e morava com meus pais em Miracatu. Encontrava em épocas de festividades ou cerimoniais, principalmente. A aparência de meu tio mudava muito. Muitas vezes estava bem magro, outras vezes bem mais obeso. Época que quase não fumava ou que fumava exageradamente. Mas era sempre risonho e carinhoso conosco e parecia sempre feliz às vezes cantarolava algumas canções. Participava de nossos jogos e atividades recreativas.

Eu sabia que meu tio tinha problemas que ele era muito criticado pelos familiares, mas com intuito de ajudá-lo. Apesar das críticas, todos queriam o seu bem. Assim eu não entendia muito bem porque as coisas não se ajeitavam.

Quando eu era criança, lembro-me de meu tio sendo admoestado pelo meu avô. Talvez, alguma coisa incomum que ele tivesse feito. Houve, certa vez, uma ocorrência em que eu também estive envolvido. Eu era muito criança. Não sabia ainda, de fato, o que era certo e errado.

Meu tio havia pegado algum dinheiro novinho e de alto valor da gaveta do meu pai. Acho que era um local secreto, um esconderijo. Por ter flagrado meu tio com aquelas notas, ele me deu uma novinha. Disse-me para dobrar bem, guardar e não falar com ninguém sobre a nota. Ele deu uma nota daquelas para o meu irmão mais velho também.

No início foi legal ter aquela nota novinha dobrada em um dos meus bolsos. Depois enjoei da nota e dei para meu avô que arregalou os olhos atrás das grossas lentes de seus óculos. Rapidamente ele chamou meu pai que foi checar a gaveta. Enfim falei como havia ganhado aquela nota. Tudo resolvido e notas recuperadas, nós ficamos de castigo num grande banco que havia encostado na parede, na sala de jantar: meu tio, meu irmão e eu.

Soube por familiares que meu tio nunca foi um bom aluno, embora tivesse uma escrita muito bonita. Me contaram que meu avô investiu nos filhos mais novos na formação escolar. Mas meu tio João Issamu não conseguiu aproveitar o ensejo, afinal hoje sei que não foi uma oportunidade especial. Diziam ainda que quando meu tio era criança ainda, ele galopava no dorso de um cavalo com os braços esticados e sem segurar as rédeas, parecia querer voar e também nadava como ninguém da região em rios perigosos e profundos. Causava muitas preocupações aos familiares.

Esta imagem é o que eu mais gosto, sem nunca ter visto. Meu tio João Issamu com os braços abertos feito uma ave, a todo galope, voando rumo a sua felicidade especial que só ele podia sentir.

 

© 2016 Osvaldo Matsuda

Brasil famílias
About the Author

Osvaldo Koji Matsuda, escritor, artista plástico e professor de arte. Professor Titular na Rede Estadual e Municipal de Ensino Fundamental e Médio de São Paulo. Atua em Artes Plásticas/Visuais realizando trabalhos propondo Arte Ecológica da Espacialidade, Arte da Biodiversidade Cósmica, Arte Oikósmica, Arte Sobra de Resquício Natural, Arte da Sobra.

Publicou entre outros: FP ou PF em 2003; FP ou PF e PF em 2008; Favelinha Eu Te Amo! em 2009; Onssasom & Favelinha em 2010; Ecologicamente Ilhamos em 2011; Geane em 2012; Ir Poético Pela Via Alinhada em 2013; Het Caain em 2014; Dois Duas em 2015; Arte Sobra de Resquício Natural e Adendo em 2016, além de Noite Anã.

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