Sou de Ano Novo. Explico, nasci em 01/01/1944 num pequeno quarto da Pensão Marubayashi de Paraguaçu Paulista na antiga Estrada de Ferro Sorocabana. Nasci ali, durante a Segunda Guerra Mundial, porque Santos foi incluída na área de conflito de guerra. Navios cargueiros brasileiros tinham sido afundados por submarinos alemães na nossa costa oceânica. Os meus pais junto com todos os japoneses e alemães que moravam na cidade foram compulsoriamente retirados da cidade com duas malas nas mãos. Um velho diário deixado por meu pai cheio de garranchos em japonês, - quase indecifráveis, - trás em detalhes relatos dramáticos daqueles dias. Aquele foi, portanto, o meu primeiro Ano Novo nesta Terra.
Emocionado, meu pai registrou o episódio da seguinte forma.
“10h40m de 01/01/1944, Toshiko, deu à luz um menino. Que divina benção teve esse filho, vir ao mundo justo neste Ano Novo! Louvado seja esse Ano Novo! Vou fazer trinta anos nesse ano. Desejo muita felicidade para esse menino e toda família.
A frente de batalha na Europa está sendo dramática desde a passagem de ano. Quase a totalidade da força alemã já se retirou da frente leste. Entre 31, Ano Novo e dia dois, Berlim foi bombardeada por 1000 aviões e os jornais locais noticiam 140 mil entre mortos e feridos. Creio que a guerra só vá terminar em Maio ou Junho desse ano, depois de ocorrer o pior dos combates que ainda está por vir. Desde o Ano Novo os jornais locais não trazem notícias sobre a situação do Japão na guerra. Isso me deixa muito triste.”
Fazia 10 anos que o meu pai estava no Brasil e a guerra só iria terminar um ano e oito meses depois.
Durante esse tempo o meu pai passou dias grudados no rádio, ouvindo notícias sobre a guerra e torcendo pelo combate final do exército Imperial Japonês. O diário está repleto de descrições do front da guerra. Ele ignorava que a seqüência de vitórias transmitidas de Tóquio era falsa e a verdade estava escondida. As batalhas das Filipinas, Saipan, Guam, Tenian, Iwojima e o desembarque em Okinawa estão descritas em muitos detalhes.
Hoje, em 2012 relendo estas páginas à luz das novas revelações é impossível lê-las sem um profundo desalento quão distante da realidade o meu pai estava. Essa grande desorientação continuou a existir por muitos anos mesmo após o fim da guerra, e os lamentáveis episódios de atos extremistas de “Vitoristas” e “Derrotistas” inéditos no mundo deixaram profundas cicatrizes no Brasil.
O meu pai acreditava profundamente na vitória do Exército Imperial do Japão, assim como acreditava na concretização do “Greater East Asia Co-Prosperity Sphere”, (grande zona de co-prosperidade do sudoeste asiático). E veio a derrota na guerra, a ocupação militar das forças aliadas, a nova constituição, o julgamento de Tóquio e a lavagem cerebral induzida ao povo japonês. E o Japão mudou. Mas a fé do meu pai, mesmo sob extrema pressão nunca esmoreceu e o seu espírito de cidadão do Império Japonês continuou sempre firme.
Lembro ter visto em casa entre seus papéis, transcrição manuscrita feita por ele, da essência da nova constituição enviada do Japão pelo seu irmão mais velho. Isso, obviamente quando não havia facilidades de máquinas copiadoras. Em resposta meu pai criticava e comentava item a item, artigos da nova constituição e enviava para o Japão.
Recordo com saudades que 70 anos atrás, com seus 30 anos, aquele jovem japonês, distante da sua pátria e incansável na defesa dela, não suportava ver alterada a constituição da sua pátria por outro país. Neste dia de Ano Novo senti meus olhos intumescerem de emoção mais uma vez, pensando no pai que eu tive. Na força de fé que ele teve em defesa da sua pátria.
* Esta matéria foi publicada em japonês no jornal São Paulo Shimbun no dia 01-01-2004. Foi revisado e traduzido pelo autor em 22-01-2013
© 2013 Hidemitsu Miyamura