Certa vez, eu estava saindo da estação Ana Rosa do metrô, quando ouvi um grupinho de estudantes que vinha atrás comentando: “Ah, mas ela tem ‘neurônios orientais’!”.
‘Neurônios orientais’? O que será? Era a primeira vez que ouvia isto. Perto há escolas de segundo grau e um cursinho, então pode ser que eles não tenham se saído bem na prova, mas uma garota oriental teria se destacado com uma boa nota.
Desde antigamente os estudantes descendentes de japoneses têm sido considerados alunos exemplares, muito dedicados e, mais recentemente, jovens de origem coreana e chinesa se juntaram a esse grupo. Portanto, ‘neurônios orientais’ deve ser uma referência a uma característica genética dos orientais, um termo que ficou em voga no meio estudantil.
Dias atrás, estava em uma loja de miudezas, quando ouvi a balconista dizer: “A Joana está parecendo uma japonesa com os olhos puxados!” Achei que estava falando de uma maquiagem nova. Ao que uma outra balconista respondeu: “Só se for por fora, porque a cabeça dela...”.
Neurônios, cabeça, cérebro. Isto me fez lembrar de algo. Logo depois que meu primeiro livro foi publicado, uma jornalista que trabalhava em um jornal nipo-brasileiro me disse que um médico queria estudar o meu cérebro.
Tal fato não chegou a se concretizar, mas fico imaginando qual teria sido o resultado. Será que o meu cérebro funciona como o de uma japonesa? Ou como de uma brasileira?
Sobre o estudo do cérebro eu já havia lido alguma coisa antes. Era um artigo que dizia que cientistas do Japão haviam estudado o funcionamento do cérebro de Kazuo Ishiguro.
Ishiguro nasceu no Japão, mas ainda menino emigrou com a família para a Inglaterra, tendo sido criado sob a influência das duas culturas. Tornou-se escritor de língua inglesa e, desde então, tem se destacado na literatura do país, conquistando o prêmio Booker Prize em 1986, 1989, 2000 e 2005. Sobre esse estudo também não fiquei sabendo o resultado, mas é um assunto pelo qual tenho muita curiosidade.
Ser nikkei é realmente interessante. Faz com que vivenciemos diversas experiências.
Sou de nacionalidade brasileira, mas já passei por situações imprevisíveis, em que fica claro como algumas pessoas costumam generalizar o “ser japonês”.
Uma vez fui visitar uma família brasileira que morava ao pé da serra, em uma chácara. Tinham acabado de se mudar. Eles mostraram a horta que estavam cultivando e, a certa altura, perguntaram-me o nome de uma planta. Eu respondi que não sabia. Na mesma hora a mulher exclamou: “Quê? Mas você não é japonesa? Pois devia saber, não?”.
No trabalho, uma colega cismou que eu era budista e me perguntou sobre o zen. Eu lhe disse que meus avós eram budistas, mas que eu era evangélica. E ela não se conformou: “Mas você não é japonesa?”.
Os brasileiros desconhecem a palavra “nikkei”. Para eles, somos nascidos no Brasil, mas não deixamos de ser “japoneses”.
Estava aguardando a vez numa repartição pública e a funcionária chamou alguém com nome japonês. Repetiu várias vezes e a pessoa não estava presente. Então, os que aguardavam perto, apontaram imediatamente para mim: “Não é a senhora?”.
Minha vontade era responder: “Ainda não estou caduca, eu sei meu próprio nome”. Em vez disso, respondi “Não” com a cabeça, dei aquele sorriso amarelo e permaneci imperturbável.
Para a maioria dos nikkeis de minha época é comum ter prenome japonês, mas eu não tenho. Isto se deve ao meu pai que teve muitos aborrecimentos por causa de seu nome, tendo decidido então que eu teria um nome brasileiro fácil e curto. Meu pai chegou ao Brasil com dois anos de idade e foi registrado com o nome à moda japonesa, isto é, primeiro o sobrenome e depois o prenome, como costuma ser no Japão. E isto causou grandes problemas pela vida afora, pois o seu sobrenome tornou-se prenome e o prenome, seu sobrenome. Para piorar, Hasegawa termina em “a”, então seu nome era confundido como sendo de mulher!
Por essa razão, tenho apenas um prenome, que é de origem latina. Mas, ter fisionomia japonesa e possuir apenas nome latino era algo difícil de entender para as pessoas da época. Logo após meu nascimento, uma vizinha perguntou à minha mãe qual era o significado de “Laura” em português, pensando que era um nome japonês. E quando eu estava no 2º ano primário, a professora me perguntou de supetão qual seria a tradução de Laura... Fiquei sem palavras.
O Brasil é um país multirracial. Os nikkeis representam menos de 1% da população brasileira, somos minoria, portanto. Mesmo assim, nossa presença é grandemente notada, pela aparência física diferente, pela altura que é mais baixa em relação aos ocidentais. Por ser a língua portuguesa bem diferente da japonesa, até hoje dizem que o nikkei fala um português errado e estranho. Até pouco tempo atrás, era frequente aparecerem personagens “fantasiados” de japonês nos comerciais e programas humorísticos da TV. O estereótipo de oriental é um tipo com olhos rasgados, dentes salientes, cabelo espetado, vestido de quimono. O português que fala soa estranho. A maioria dos nikkeis não deve ter dado importância, achando “É só engraçado”, mas eu não concordava. Depois de ver um desses comerciais, mandei uma carta de protesto ao jornal. Não sei se foi casualidade, mas logo depois que minha carta foi publicada, o comercial saiu do ar.
Eu fiquei muito orgulhosa por ser nikkei quando estava no 1º ano colegial, em 1963.
Pela primeira vez na história da música popular japonesa, uma canção fazia sucesso no mundo inteiro. Ela ficou em 1º lugar no ranking da famosa revista norte-americana Billboard. A música era Ue o muite arukoo, interpretada por Kyu Sakamoto. Nos países de língua inglesa ela ficou conhecida com o título de Sukiyaki e no Brasil recebeu a versão intitulada “Olhando para o céu”.
Pois foi graças a Sukiyaki que eu fiquei bastante conhecida na escola. Numa época em que os quadrinhos e o anime japoneses nem eram conhecidos, música cantada em japonês era uma novidade e as colegas de classe começaram a pedir a letra. Então, na hora do intervalo eu ficava na sala de aula escrevendo a letra dessa canção no caderno delas. Também ensinei a pronúncia certa de cada palavra.
Foi aproveitando o fato de ser uma nikkei que consegui me tornar romancista da literatura brasileira. Eu desejava muito escrever uma história em que a personagem principal fosse alguém nikkei. E assim nasceu Kimiko, uma mulher das mais comuns, mas que era diferente de uma brasileira na sua maneira de pensar, de agir, de expressar seus sentimentos. Nem por isso ela era igual a uma japonesa. Os demais personagens também são nikkeis, cada qual com sua personalidade definida. Eu queria escrever uma história de ficção, mas que girasse em torno do universo nikkei, tão próximo de mim.
Na verdade, a história de Kimiko teve uma continuação, que foi o meu segundo romance, mas por problemas da editora, sua edição não passou de 300 exemplares. Em seguida, comecei a preparar um outro livro, meu primeiro trabalho bilíngue que seria lançado na comemoração do Centenário da Imigração Japonesa. Mas nesse ano (2008) tive que ir ao Japão e, assim, esse projeto foi engavetado.
Quando retornei ao Brasil, as festividades do centenário haviam terminado e eu não encontrei nenhuma editora interessada em publicar meu trabalho. Tive de me conformar, achando que meus dias de escritora haviam chegado ao fim, mas por diversas vezes pensei “Que pena!”.
No decorrer dos dias, fiquei sabendo da existência do Discover Nikkei e voltei a sonhar! Que felicidade poder continuar fazendo o que eu mais gosto. Que alegria poder compartilhar minhas experiências de nikkei com pessoas do mundo inteiro!
E a cada dia que passa, quero preservar o meu lado nikkei com vigor, tal como se faz com uma planta de espécime rara e preciosa.
© 2011 Laura Honda-Hasegawa