Eram os dias mais esperados do ano: as férias de verão. Ela se sentia feliz de não ter que levantar cedo ou fazer o interminável dever de casa. Ficava buscando uma maneira de aproveitar o tempo livre, pois havia sido proibida de brincar com a vizinha e não tinha nada para assistir na televisão. Pensou então onde poderia ir, já que seria repreendida se fosse brincar na mobília antiga da sala ou com os ornamentos que ela tanto gostava. A cozinha e o banheiro estavam proibidos para o seu divertimento por causa dos perigos que representavam. Não deixavam ela ficar nos quartos sozinha e os outros membros da família ainda estavam dormindo.
Ela subiu, com suas perninhas curtas, na mesa do pátio para alcançar um livro. Queria desenhar. Pegou então um velho volume numa língua estranha, com um montão de texto e imagens em preto e branco. O avô a pegou de surpresa, dizendo: “Se cai, quebra nuca”. Ela estava tão absorvida que não havia escutado seus lentos passos. Com um sorriso de cúmplice que iluminava o seu rosto redondo e seus pequenos olhos, ela confessou que estava entediada e o que pretendia fazer com o livro. O avô explicou que era uma obra da terra dele, que não era para pintar, e que contava uma história que ele leria para ela caso se comportasse bem.
O avô riu. Sorrindo com seus olhos rasgados, ele lhe mostrou como, dobrando o papel, era possível criar figuras diferentes. Ela aprendeu a fazer copos, chapéus, animais e um barco. Em seguida, o velho leu o conto “A Tartaruga e a Lebre” e mencionou a canção sobre aquela história, cantando-a então no seu idioma nativo. Pouco a pouco, ela também aprendeu a canção. Passou a cantá-la para todos e dizia com orgulho quem a havia ensinado. O velho também a ensinou a contar até dez e a dizer algumas frases em japonês. Durante a tarde, ele contava sobre os costumes e lendas do Japão; histórias cheias de fantasia que a deixavam emocionada.
Passaram os dias e a menina improvisou uma sala de aula com poltronas, cadeiras do pátio e uma tábua velha como quadro-negro para que o avô, junto com as bonecas, aprendesse a falar bem espanhol. Ela transmitiu a ele todo o seu conhecimento sobre a sua língua e a história de Cuba. Como o avô não aprendia, ela se deu por vencida. Foi então que ele contou, com um sorriso safado que iluminava o seu corpo magro, sobre a sua travessia de barco rumo a esta ilha caribenha e tudo o que sabia sobre sua cultura e seu povo.
Eles estavam sempre juntos. Ela aprendeu a jogar dominó e ele contava sobre outros jogos de mesa japoneses. Uma tarde, estavam jogando dominó com a garotada da vizinhança, muito felizes porque estavam ganhando, quando um dos perdedores, bem zangado, disse, “não rouba, chinês”. O rosto do velho se transformou; o seu sorriso gentil deu lugar a um rosto duro, uma posição de alerta. A neta se assustou porque nunca tinha visto ele brigando ou tão zangado. Ele repreendeu fortemente o menino; dava para ver que ele se sentiu ofendido. Logo depois descobri que era uma ofensa para os japoneses serem chamados pela nacionalidade de outra nação asiática.
A história entre o avô e a menina foi repetida ano após ano, durante todas as férias, até que um dia o velho perdeu a memória. Uma doença muito grave fez com que ele esquecesse tudo sobre Cuba; não conseguia se lembrar nem de uma palavra em espanhol, desta terra que o havia adotado como filho. Só falava na sua língua nativa e cantava canções de quando era criança. Fazia muitos barcos de papel com as mãos trêmulas e a convidava para navegar com ele.
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O nosso Comitê Editorial selecionou este artigo como uma das suas histórias favoritas da série Raízes Nikkeis: Mergulhando no Nosso Patrimônio Cultural. Segue comentário.
Comentário de Alberto J. Matsumoto
É uma história muito enternecedora, na qual Akemi recorda os belos momentos que, como neta, ela compartilhou com o seu avô. Este imigrante japonês chegou à ilha caribenha de Cuba e foi um dos participantes na organização da associação japonesa e da escola japonesa, tendo contribuído assim para o desenvolvimento da comunidade nikkei nos seus primórdios. Apesar de que estas instituições não tiveram a continuidade desejada.
Com o seu avô, Akemi aprendeu o origami, como também as fábulas, lendas e tradições do Japão.
Mesmo que você não tenha bom domínio do japonês, fica claro a grande importância desses ensinamentos.
Infelizmente, este avô hoje sofre de demência senil e aparentemente não consegue se lembrar da sua experiência em Cuba, mas apenas do idioma e da vida no seu longínquo passado no Japão. Ele nunca pôde retornar ao seu país para ver seus entes queridos, mas nesse ensaio você pode sentir que esse era um grande sonho que ele não conseguiu realizar.
Este ano, Cuba está cumprindo 120 anos de imigração japonesa. É um ano comemorativo.
Hoje em dia, os nikkeis vão estudar e passear no Japão. Mas é importante que as gerações atuais, sejam da terceira ou da quarta, saibam que houve épocas e países que dificultavam o retorno ao Japão. Nesse ensaio, você pode sentir estas difíceis realidades, e por isso me permiti selecioná-lo de acordo com a minha preferência.
© 2018 Akemi Figueredo Imamura