KUSURI ZUKE IGAKUNO SHIMPONI NAKERU OI
Haicai em que o ancião lamenta o excesso de remédio que lhe é prescrito (pelo filho médico) com o avanço da medicina
TSUMA YUKITE SHIRU KOGARASHINO TUMETASAWO
Haicai em que o vento gelado faz recordar a esposa que se foi
Estes “Haicais” foram feitos pelo meu sogro Shoji Kamimura, nos seus últimos anos de vida. Ele foi “haicaista”, um hobby cultivado com muito talento, publicado nas colunas especializadas nos jornais de língua japonesa, o São Paulo e o Nikkei Shimbun. Toda vez que eu os lia, parecia ver naqueles versos cenas instantâneas do seu cotidiano. Eram carregados de profundo sentimento, que chegava a tocar a nossa alma.
Meu sogro era da província de Wakayama, Japão, e teve com a esposa Shizuko seis filhos, - dois homens e quatro mulheres. Meu sogro a duras penas, encaminhou-os todos até a faculdade formando, três médicos, um engenheiro e duas graduadas em ciências sociais. Como teve que vir ao Brasil como emigrante quando ainda era uma criança, sua educação escolar no Japão fora interrompida na quarta série do primário, sem nunca ter completado oficialmente nenhum curso.
Aprendeu por conta própria, - no meio do cafezal, - a dominar a língua japonesa a ponto de ser “haicaista”, habilidade incomum a qualquer indivíduo nas suas condições de colono imigrante, a menos que fosse dotado de privilegiado talento literário. Detestava tudo que não fosse correto. Era uma expressão viva e símbolo de “japonês garantido”, termo só usado para definir aquele em quem se podia confiar.
Aos sessenta anos de idade, meu sogro fez uma grande cirurgia nos intestinos, cujas seqüelas o atormentaram pelo resto da vida. Sua esposa, a minha sogra sofria de problemas cardíacos e teve um derrame aos setenta e cinco anos, vindo a falecer dois anos mais tarde, em Julho de 1997. Na época seus dois filhos ainda estavam solteiros, mas suas quatro filhas tinham lhes dado nove netos que lhes proporcionaram muita felicidade.
Os últimos dias da minha sogra ela os viveu rodeada de muito amor. Que Deus a tenha em paz.
Tendo perdido a esposa, meu sogro passou a manifestar forte desejo de ir para uma casa de repouso. Estava aí uma velada preocupação de não causar incômodo aos familiares. Foi na Casa de Assistência Social Dom José Gaspar, o “Ikoi no Sono” onde ele encontrou o local ideal que procurava. Ficou lá por quatro anos, até o seu falecimento em Maio de 2001. Somos muito gratos àquela instituição pelo excelente padrão de serviço e toda atenção proporcionada a ele.
Pelo tempo em que o meu sogro ficou naquela instituição, todos nós ficamos familiarizados com o dia a dia da vida daquela Casa de Repouso. A cuidadosa atenção das irmãs Cáritas, o incansável apoio dos funcionários e voluntários estavam nos mínimos detalhes à nossa volta. Mas, havia também, aqueles que quase nunca recebiam sequer uma visita. Outros chegavam a apresentar algum distúrbio de comportamento, fazendo, como crianças, brincadeiras até inocentes. Outros queixavam que havia urina fora do vaso sanitário... No outro extremo havia os que recebiam muita visita e felizes repartiam com outros, guloseimas recebidas de parentes, momentos esses, particularmente transbordantes de felicidade.
A família do meu sogro era budista, mas depois da sua entrada naquela instituição, meu sogro quis converter-se cristão católico e foi batizado com o nome de João, ou “yohanes”. Estava felicíssimo.
Pois bem, lá no “Ikoi no Sono” ele continuou praticando o hábito de compor “haicais” e “tankas”. São dele;
YUUSHOKUNO SUMITARU ROOKA TADAHITORI
ROOBAWA UTAU WARABENO UTA Oimagem da anciã, após o jantar, - só no corredor,
entoando canção de ninar
AMASAN MO UKARETE ODORU JUNINA MATURI
imagem da Madre na Festa Junina, dançando com leveza
Lá no “Ikoi no Sono”, meu sogro conheceu uma senhora muito fina que tocava “koto”1. Ela tinha uma pequena dificuldade para movimentar o braço esquerdo. Meu sogro se dava muito bem com ela e costumava empurrar sua cadeira de rodas pelos parques da instituição, repartindo merendas em sombra de árvores. E ele compôs um poema dedicado a ela. Esse poema “tanka” apareceu na coluna especializada no São Paulo Shimbun. Era assim;
HONOKANARU KOINI NITARUKA ASAYUUNO
KURUMAISU OSU OI HATIJYUUNISAIserá suave amor meus oitenta e dois anos que conduzem manhã e tarde, a cadeira de rodas
Quando esse poema saiu publicado no jornal, meu sogro ficou transtornado sentindo flagrado o seu sentimento até aquele momento guardado só para ele, com muito carinho. Pareceu temer por uma repercussão maior. Meu sogro transformou-se, parecia ter voltado à adolescência, surpreendido após cometer alguma arte às escondidas. Irrequieto, ele telefonou para seu filho médico, para ir buscá-lo no Ikoi no Sono, imediatamente. Passou uma semana até aplacar seu vulcão interno. Já mais calmo pediu, acanhado, para que o levasse de volta. Eu e minha esposa Alice o levamos de volta ao “Ikoi no Sono”. Lá estava para nos receber, um rosto lindo e feliz, com sorriso transbordante da senhora do “koto”.
Eu tinha acabado de ver a outra face humana do meu sogro, que até então, eu desconhecia. Pensei comigo mesmo, “Ah! Esse meu sogro...” Tenho muita saudade dele.
Nota:
1. “koto” antigo instrumento musical de cordas. Uma espécie de harpa horizontal.
© 2013 Hidemitsu Miyamura