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A “vila dos milagres” e a “terra prometida” - Parte 1

É comum ouvir entre os brasileiros nikkeis que nós somos “japoneses no Brasil” e “brasileiros no Japão”. E que, portanto, diferente dos nossos ancestrais, estamos condenados a sempre ser uma minoria de alguma forma ou outra. No entanto, a verdade é que os meus ancestrais também eram uma minoria no Japão – e viveram às margens da sociedade japonesa por centenas de anos.

Eles eram “kakure kirishitans”, como eram descritos os cristãos ocultos no Japão sob a rígida proibição do cristianismo durante o período Edo (1603-1867). Entre os anos 1910s e 1950s, muitos dos meus antepassados migraram para o Brasil e outros países latino-americanos. E contrastando com os séculos de silêncio e isolamento no Japão, eles tiveram um papel ativo na comunidade nipo-brasileira – construindo escolas, igrejas, e ajudando os demais imigrantes a se adaptarem à sociedade brasileira.

Esta é a história de dois lugares ligados pela história, pela fé e pelo sangue – a “vila dos milagres” de Imamura, na atual cidade de Tachiarai, distrito de Mii, província de Fukuoka, Japão, e a “terra prometida” no bairro do Gonzaga, município de Promissão, estado de São Paulo, Brasil.


A origem dos cristãos de Imamura

A atual vila de Imamura seria uma vila produtora de arroz ordinária na planície de Chikugo (área no sul da província de Fukuoka, próxima à cidade de Kurume), não fosse pela enorme igreja de tijolos gótica, à semelhança de igrejas medievais no norte da Europa.

Vila de Imamura em Tachiarai, distrito de Mii, Fukuoka. Foto tirada por Edson Hiroshi Aoki e protegida por direitos autorais.

A igreja é o sinal mais visível de uma comunidade cristã que existe na área desde 450 anos atrás, 300 anos antes do Catolicismo Romano ser oficialmente estabelecido no Japão. Esses cristãos estavam “escondidos” do resto do mundo até serem contatados pela Igreja Católica em 1867, não sendo, portanto, uma tarefa nem um pouco simples descobrir como e quando eles se converteram.

Como outros cristão ocultos, eles tinham crenças e rituais bastante particulares. Em particular, os cristãos de Imamura acreditavam em uma espécie de santo chamado “Joan Mataemon” que supostamente introduziu o cristianismo na vila, realizou milagres, e morreu crucificado como mártir na vila próxima de Hongo.1, 2, 3 

Localização da antiga província de Chikugo no Japão. Mapa criado por Lincun.

O que se sabe com quase certeza é que o Cristianismo foi introduzido na então província de Chikugo em algum momento da segunda metade do século XVI, quando a região era governada pelo clã de Sorin Otomo, senhor da província de Bungo (correspondendo à atual província de Oita) convertido ao cristianismo, e quando jesuítas como Luís de Almeida tinham liberdade para pregar na região.1, 2, 3 Dos poucos documentos que sobreviveram desta época, sabe-se que Imamura então se chamava “Tanakamura” e que na vila viviam os irmãos Sakyo e Ukyo Hirata, atribuídos como ancestrais de grande parte dos cristãos da região.1, 5

Em 1598, após o incidente do navio San Felipe, o Shogun Hideyoshi Toyotomi prendou e executou 26 missionários no Japão em Nagasaki, que seriam mais tarde conhecidos como os “26 Mártires do Japão”. Depois desse evento, o cristianismo passou a ser perseguido no Japão, mas acredita-se que em Imamura a religião foi por um certo tempo tolerada pelo fato da província de Chikugo ter sido governada por samurais cristãos, como Hidenare Morikami, Yoshimasa Tanaka e Tadamasa Tanaka.1, 2, 3

Mas em 1638, como o fracasso da Rebelião de Shimabara contra o Shogunato Tokugawa, o cristianismo seria completamente banido em todo o Japão pelos próximos 235 anos, obrigando todos que cristãos que não foram mortos ou se converteram a permanecerem escondidos.


A vida nas sombras e a descoberta

As perseguições implacáveis do Shogunato Tokugawa contra os “kakure kirishitans” resultaram em milhares de execuções, tendo sucesso quase total em erradicar o Cristianismo do Japão. Por exemplo, sabe-se que a cidade de Kurume tinha cerca de 7.000 cristãos antes da proibição, mas eles nunca mais foram mencionados na História.4

De fato, é praticamente um milagre que durante séculos de proibição, a religião cristã sobreviveu e prosperou em uma pequena área rural a apenas 10 km da cidade de Kurume. Isso só foi possível, primeiro, porque os cristãos mantinham o tempo todo a fachada de budistas, inclusive frequentando e enterrando seus mortos em templos budistas, e executando rituais associados ao cristianismo em total segredo, tal como esconder uma cruz de papel sob o peito dos finados.1, 2 Em segundo, porque os habitantes evitavam se misturarem e se casarem com não-cristãos, fazendo com que com o passar do tempo, a maioria dos habitantes de Imamura tivessem apenas dois sobrenomes: Hirata e Aoki.3, 5

Antigo cemitério da família Aoki no Ankoku-ji, templo budista localizado em Kurume. Foto cortesia de Shinji Ito.

Na segunda metade do século XIX, o Japão, anteriormente isolado da maior parte do mundo durante a era Edo, era cada vez mais pressionado pelas potências da Europa para se abrir ao comércio. A prática da religião cristã continuava proibida para japoneses, porém foi permitida aos comerciantes europeus da cidade-porto de Nagasaki, onde os franceses haviam construído a Igreja Católica de Oura. Secretamente, a Igreja Católica aproveitou para encontrar e estabelecer contato com as comunidades de “kakure kirishitans” espalhadas pela ilha de Kyushu – em 1867, foi a vez da comunidade de Imamura.2, 3

A descoberta de que havia outros cristãos no Japão, sob a liderança da grandiosa Igreja de Roma, trouxe enorme entusiasmo para os habitantes de Imamura. O líder espiritual da vila, Yakichi Hirata, fez várias viagens para Nagasaki, ensinando o dogma católico para os demais aldeões no armazém de Saihachi Aoki. A falta de cuidado, no entanto, fez com que tais atividades fossem descobertas pelas autoridades do distrito de Takahashi (mais ou menos correspondendo ao atual distrito de Mii e atual cidade de Tachiarai), resultando em cerca de uma centena de prisões.2, 3 Nessa época, as autoridades constataram que havia cerca de 867 kakure kirishitans na região, 500 em Imamura e o restante nas vilas próximas.3, 5

Por motivos não muito claros, todos os aldeões foram soltos em 1867 com a promessa do chefe de vila de serem convertidos ao budismo, o que nunca aconteceu.1, 3 Em 1873, a proibição do Cristianismo foi finalmente revogada no Japão, e a partir de 1879, os cristãos da região começaram a ser batizados como católicos pelo primeiro padre de Imamura, o francês Jean-Marie Corre. A primeira igreja, uma igreja simples de madeira, foi construída em 1881 pelo padre Michel Sole e expandida em 1900. Em 1912, havia 2.713 Católicos vivendo em Imamura e nas vilas próximas.3, 5

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Referências

1.  伊藤慎二, 考古学からみた筑後今村キリシタン, 西南学院大学国際文化論集 29(2), 71-97, ISSN 0913-0756, Março de 2015.

2. 安高啓明, 久留米藩今村の潜伏キリシタンの発覚と信仰生活,西南学院大学博物館研究紀要第2号, Março de 2014, ISSN 2187-6266.

3. 佐藤早苗, 奇跡の村 : 隠れキリシタンの里, 河出書房新社, 2002.

4. カトリック久留米教会, visitado em 22 Jul 2021.

5. 中川憲次, カトリック愛苦会修道会の歴史的研究(1)草創期, Fukuoka Jogakuin University bulletin Human relations (9), 47-53, ISSN 13473743, Março de 2008.

 

© 2021 Edson Aoki

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About the Author

Edson Hiroshi Aoki é um cientista de dados nascido em São Paulo – Brasil, com doutorado em Matemática Aplicada pela Universidade de Twente, na Holanda, e atualmente residindo em Singapura. Ele geralmente escreve artigos nas áreas de ciência de dados, machine learning e inteligência artificial, que podem ser encontrados em https://edsonaoki.medium.com.

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