Fazia um ano e meio que Kaori estava no Japão.
Ela mesma estava surpresa, pois sua vida estava melhor do que antes, tinham aumentado as oportunidades para aprender coisas novas, estava conhecendo pessoas diferentes, parecia estar vivendo um sonho.
Seu local de trabalho ficava no 2º andar do restaurante da família e ela morava a 10 minutos a pé dali em uma rua sossegada.
Certa manhã, antes de sair para o trabalho, estava cuidando de um vaso de plantas na entrada da casa, quando algumas crianças a caminho da escola cumprimentaram com um “Bom dia” e seguiram em frente.
Foi tão inesperado que até ficou emocionada ao ver crianças que nem a conheciam, dirigindo-lhe um cumprimento com educação e respeito.
No Brasil, a vida de Kaori se resumia a sair de casa para o trabalho e voltar do trabalho para casa. Mas agora ela dispunha de tempo para novas experiências, novos aprendizados.
Começando com aulas de culinária, curso de língua japonesa e aulas de ikebana1, agora havia mais um desafio pela frente: conhecer o Clube de Leitura.
Kaori havia lido o convite no jornal e logo achou que ia ser bom, pois apesar de ser principiante no estudo de japonês, ela adorava ouvir o japonês falado pela sonoridade das frases.
O lugar ficava numa rua estreita atrás da estação, uma construção de madeira com largas janelas por onde se podia ver o interior com livros expostos em estantes.
Adentrando o local, algumas pessoas estavam sentadas tomando chá: uma senhora de óculos de aro preto, ao lado uma jovem sorridente, um senhor distinto usando uma boina azul. Na fileira de trás, três senhoras e um rapaz parecendo ser estudante.
Foi então que chegou um homem de terno azul-marinho. Era Kentaro Watabe, o proprietário da livraria e organizador do Clube de Leitura.
A leitura desse dia era o capítulo I do livro “Uma pálida visão dos montes” do escritor Kazuo Ishiguro. Foi muito difícil para Kaori compreender o que estava sendo lido, porém, a melodia que as palavras produziam e a voz de Kentaro certamente deixaram-na encantada.
Ela achou muito bom ter comparecido, pois, mesmo sabendo que ela era brasileira e não falava bem o japonês, todos foram atenciosos, queriam conversar, perguntar coisas sobre o Brasil.
Chegando a hora de escolher o tema da reunião seguinte, Kentaro sugeriu que a leitura fosse algo escrito em português e todos aprovaram a ideia. E, claro, Kaori ficou encarregada de fazer essa leitura.
Depois de algumas pesquisas, ela escolheu a canção infantil “A Casa”, de Vinícius de Moraes. Primeiro leu a letra da canção, em seguida cantou-a e, por fim, os participantes cantaram junto. Todos gostaram e acharam a atividade interessante e divertida.
Kentaro Watabe lecionava língua japonesa na escola de ensino médio e morava com sua mãe num apartamento na cidade. A livraria foi de seu falecido pai e existia há mais de 30 anos. Recentemente havia passado por reformas, tornando-se um espaço aconchegante com livros por todos os lados, lembrando o ambiente das cafeterias de estilo retrô em moda no Japão.
Além de frequentar o Clube de Leitura, Kaori começou a se dedicar à arte do E-tegami2 sob a orientação da srª Watabe, mãe de Kentaro. A sua primeira E-tegami ela enviou para a Bá no Brasil.
Por sua vez, Kentaro foi conhecer o restaurante e a padaria que a família da cunhada de Kaori administrava. Tornou-se um frequentador assíduo e isto fez com que se aproximasse mais e mais da comunidade de nikkeis brasileiros.
Algum tempo depois, Kentaro e Kaori começaram a namorar. Iam ao cinema, visitavam museus e exposições e conversavam sobre os mais variados assuntos. Para surpresa de ambos, apesar das diferenças culturais, descobriram que tinham muito em comum em termos de ideias e juízo de valores.
Até que um dia, eles comunicaram que estavam pensando seriamente em se casar. O que não deixou ninguém surpreso, pois esperavam que, mais cedo ou mais tarde, esse momento chegaria.
O irmão de Kaori telefonou imediatamente para o pai no Brasil. Ao ouvir que Kaori ia se casar, a Bá falou muito emocionada: “Essa menina merece ser feliz mais do que ninguém! Desde cedo pensava mais na família do que nela, sempre nos incentivou e nos apoiou em tudo!”.
Como Kentaro era professor, o casamento foi marcado para o dia 26 de julho, durante o recesso escolar de verão.
Kaori pretendia continuar trabalhando na contabilidade dos negócios da família, porém, iria diminuir o número de aulas dos cursos que fazia. Queria cumprir sua função de dona de casa da melhor forma possível.
Havia muito que preparar até o grande dia. Os recém-casados iriam morar no apartamento de Kentaro e a srª Watabe se mudaria para a casa que Kaori ocupava, pois era ideal para uma pessoa sozinha.
No Brasil, o pai de Kaori não via a hora de viajar para o Japão. Seu maior sonho era conduzir sua única filha até o altar. “Espera aí. Vai ser na igreja? Ou no santuário xintoísta? Preciso saber. Não, não! O mais importante é que a Kaori arrumou um marido que é professor, trabalhador, boa gente. Não é bom demais?”.
A verdade é que todo mundo está feliz com o casamento de Kentaro e Kaori. E tem mais: Emily e Koji estão esperando o primeiro filho para a mesma época, julho!
Eles nasceram e cresceram em países diferentes, um dia se encontraram e se conheceram melhor e a vida ficou mais bonita, mais divertida! Não é maravilhoso?
Notas:
1. Arranjo floral que cria uma harmonia de construção linear, ritmo e cor.
2. Cartão desenhado à mão utilizando tinta e pincel. Junto ao desenho escrevem-se frases curtas dirigidas ao seu destinatário.
© 2025 Laura Honda-Hasegawa