Eu nasci no interior do estado de São Paulo, 600 km a noroeste, no sertão paulista. Da capital segue uma estrada que sobe e desce na imensidão das colinas verdes de cana-de-açúcar e fazendas de gado. Depois de Bauru a estrada sobe em linha reta ao céu. Um lugar sempre quente, a temperatura oscilando de 25 a 40 graus.
Sou descendente de imigrantes japoneses, cujos ancestrais partiram do Japão e foram para a China no lado paterno e Argentina no lado materno. Tecnicamente meus pais são nisei, a segunda geração de japoneses nascidos fora do Japão, mas vivenciaram na infância os horrores da guerra no Japão.
Eles imigraram ao Brasil na década de 60 e desse encontro, eu vim ao mundo, brasileira e sansei, a terceira geração. Cresci em meio a muitas culturas, japonesa, argentina, chinesa e brasileira. Minha primeira língua foi o japonês e cresci ouvindo japonês, espanhol e português.
Meu nome Norma veio da influência argentina materna e o nome do meio, Chie, do nome japonês de minha mãe. Ao casar-se no Brasil, na ocasião do registro no cartório, ao não registrar o nome japonês, minha mãe perdeu o direito ao seu uso. Meu pai, inconformado com a perda, registrou o nome “Chie” no meu nascimento, à revelia de sua digníssima dona.
No meu registro de nascimento existe outra peculiaridade. Na lacuna origem dos pais, meu pai está registrado Shinga-ken (o certo é Shiga) e o nome de meu avô materno como Kataro. Imagine se os meninos, que já faziam bullying com a ladainha “japonês, calabrês, come sapo todo mês” vissem a minha certidão? Certamente zombariam com um “xinga quem” ou um “catarro” além do “tchê” e “vacavaca”...
Na adolescência questionei a falta do ideograma chinês, o kanji no meu nome Chie, que vinha escrevendo só no hiragana. Sem uma resposta, eu mesma escolhi um ideograma, significando “abençoada em sabedoria”, quando aprendera na escola japonesa a palavra sapiência, satoru. Depois, fiquei sabendo que muitos descendentes não conhecem o significado ou o ideograma dos seus nomes japoneses e até mesmo de onde vieram seus antepassados.
Na ocasião da visita dos tios paternos do Japão, meu tio perguntou o porquê do nome tão feio, Norma. Ao notar minha cara de espanto, logo ele explicou que ficara três anos num campo de trabalho na Sibéria, no final da segunda guerra mundial. Apesar de não saber russo, uma palavra aprendera e ficara na memória: norma. Esta palavra russa significava regra e cota diária de trabalho no corte das árvores para receber a parca ração de sopa aguada e uma fatia de pão preto, num frio de 60 graus negativo. Foi um milagre ter sobrevivido.
Então meu primeiro nome era argentino e russo. Quando estive no Japão como intercambista da província de Shiga, as pessoas me chamavam por Norma, no sotaque japonesado, NORUMA. Apesar de ser nome estrangeiro, no Japão significa regra e padrão de perfeição. Quando os chineses falavam comigo, pronunciavam “NOLOMA” e me chamavam carinhosamente “Noloma chan”. E virava alvo de chacota dos nikkei latinos, com o trocadilho “NOROMA”, que significa lerda em japonês.
Tendo crescido na educação familiar japonesa, a passagem pelo Japão fora um grande aprendizado de vida e de crescimento pessoal. No Brasil vivera na sociedade que me via como “japonesa”, pelo meu estereótipo. Assim como os asiáticos chineses, filipinos, coreanos entre outros, eram chamados homogeneamente de japoneses.
Dessa forma, crescera estereotipada como japonesa apesar de ser da terceira geração e me sentia estrangeira, não pertencente ao “ser brasileira”. Aqui também recebera outras alcunhas ao longo da vida: Neusa, Neusinha (de japoneusa), San, Obasan, Nee, Neechan, Neesan, Japa, Japinha, Japonesinha, Olhos rasgados, entre outros.
No Japão, ainda que soubesse falar o japonês oficial de Tokyo, a vida no interior em Shiga e nas visitas da família materna ao norte, em Akita, fizeram perceber que, num país do tamanho do estado de São Paulo, tinha muitos dialetos, alguns indecifráveis. Ali eu também era estrangeira por não falar os dialetos locais.
Dos choques culturais e linguístico, passei pela crise de identidade.
No Japão, apesar da minha cara e ter ascendência japonesa, eu não era considerada japonesa. Era gaijin (estrangeira) era burajirujin (brasileira). Então, quando me perguntavam a qual geração eu pertencia, eu respondia: “nunsei”... Era uma época em que ainda não se usava o termo Nikkei.
Assim, aos trancos e barrancos, fui driblando com jeitinho brasileiro a sina de carregar tantas culturas num só corpo. Essa experiência me ensinou uma grande lição: o respeito pelas diferenças e do amor ao próximo, entendendo a diversidade e a riqueza que cada ser humano carrega em si.
© 2024 Norma Chie Wakizaka
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