Eu comecei a frequentar a escola pública do bairro somente aos sete anos de idade. Até aquele momento o meu mundo era só a chácara dos meus avós e a lavanderia. No primeiro dia da aula, descobri que a grande maioria dos alunos não tinha olhos puxados, eu era uma das poucas amarelas da escola. Esse fato em si não me causou nenhum desconforto, pois já via um Brasil assim na TV, mas isso se tornou um problema que foi evidenciado pelas brincadeiras vindas de alguns colegas acerca do meu fenótipo e de minhas origens, que eu não achava graça nenhuma.
Na escola, havia muitas garotas com o nome de Marcia e os professores passaram a me chamar de Tieko, meu nome japonês. Por mais difícil que fosse explicar o meu nome para os outros, me sentia protegida por ele e gostava de ser diferente.Os japoneses acreditavam que escolher um nome e a forma como seria escrito era uma enorme responsabilidade, pois poderia influenciar o futuro da criança. Os ideogramas escolhidos pelo meu pai foram: ti (智), que significa sabedoria, e (恵) abençoada e ko (子) criança. O meu nome poderia ser escrito com outro kanji de ti (美), que significa beleza, mas meu pai preferiu que eu fosse sabida, portanto, meu nome em japonês se escreve: 智恵子, criança abençoada pela sabedoria.
Às vezes, era mais sábio usar Marcia, pela ignorância do meu interlocutor ou por aqueles que não se interessavam em saber:
- Já disse não sou Diego, mas pode me chamar de Marcia – aquela que vem de Marte e que significa guerreira, mas eu me sentia uma ET.
Ser diferente não era uma opção. Não conseguia escapar dos apelidos imputados às garotas asiáticas: japinha, japa, china, nissei, nãosei, que mudavam conforme a época. Já fui chamada de Tieta por causa de uma novela, Tieppo por causa de um crime famoso, Pokahontas e Mulan por causa da Disney.
A linguagem se tornava algo violento ao naturalizar termos como olho puxado, rasgado ou cara achatada. As máximas: Japonês é tudo igual. Fala Xing Ling. Volta pra China. Abre os zóio! – me transformavam em um objeto identitário, sempre vista como uma coisa, nunca como eu mesma. Era uma batalha que quase sempre saía perdendo. Mesmo que eu expressasse o meu incômodo em relação a essas violências, era muito comum me invalidarem: – Ah, por que você ficou brava, você não é japonesa? Ah! Você é muito sensível. Esses tipos de comentários não me permitiam compreender e nomear corretamente as difíceis situações pelos quais eu passei. As brincadeiras mascaravam a hostilidade racial de seus autores, mantendo sua imagem positiva e de superioridade. – É só uma piada.
Eu era uma “japa” acidental perdida tentando me achar. Naquela época, a imagem da mulher brasileira era traduzida na pele de Sonia Braga, com sua sensualidade e alegria. Eu queria ser a Gabriela. Por causa dela subi a bainha da saia do uniforme e fui para a escola, ouvi coisas que não gostei e resolvi desfazer a bainha no mesmo dia, quando voltei para casa. Não era fácil ser brasileira.
Por outro lado, não tinha muitas referências da cultura japonesa, exceto os programas Japan Pop Show e Imagens do Japão que assistia na Tupi e na TV Gazeta aos domingos com a família. Eu tinha um sentimento ambíguo, pois também não sabia o que era “ser japonesa”, de um certo oriente, além dos estereótipos que me impunham: ser inteligente, boa em matemática, cdf, bem-comportada, delicada, quieta, obediente e submissa. Em um processo de negação, fiz um esforço enorme para me afastar do modelo feminino asiático, pelos quais era vista e determinada, um caminho solitário, sem estrelas para me guiar.
Eu sempre fiquei instigada com significado do meu sobrenome: Irii. Era um nome raro até mesmo para os japoneses. Iri (入), significa entrar, i (井) é bem ou comunidade e também faz parte da palavra poço. Entrar no poço, era como eu explicava a forma como meu sobrenome era escrito.
No Japão, a maioria das pessoas comuns como lavradores ou pescadores não tinham sobrenome. No Período Meiji, com a crescente modernização do país houve a criação da Lei do Registro Civil. Pela primeira vez todos os indivíduos foram obrigados a se cadastrar e a adotar um nome para a família. Como as pessoas podiam escolher, adotavam nomes de figuras importantes ou criavam a partir da localidade onde viviam ou associando a algum elemento da natureza, por exemplo: Yamashita, que significa ao pé da montanha.
Eu tentava entender a razão pela qual os meus antepassados adotaram o nome Irii. Será que eles moravam perto de um poço, será que era um poço natural? Um lugar sagrado? Ou será que a única coisa que possuíam era um poço? Algo essencial para sua sobrevivência ou algo que somente eles tinham? Será que eles eram especializados em poços? Por que eles entravam no poço? O que isso poderia determinar minha vida?
Entrar em um poço frio e escuro não parecia uma coisa muito prazerosa, mas muitas vezes me sentia dentro dele. No entanto, poderia ser mais acolhedor se imaginar flutuando nessa água pura, como um líquido amniótico, que alimenta e protege o bebê sonhando com a vida lá fora. E se resolvesse cavar ainda mais o poço, tão fundo, tão fundo que chegasse do outro lado do mundo, no Japão, será que eu encontraria alguma resposta?
© 2024 Tieko Irii
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