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Glória Megumi...

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A família da autora, de descendência japonesa e brasileira.

Passaram-se tantas décadas, mais de sete, com certeza virão outras tantas pela frente. Nesse momento, eu resolvi me armar de coragem e mergulhar na minha própria existência. No meu próprio “buraco negro” (expressão que emprestei da cosmologia) e mergulhar de cabeça nas minhas memórias e pesquisar as minhas linhagens familiares.

 A verdade é que há muito tempo estas questões não se resolveram e ainda estou buscando respostas, mas de concreto é que despertou em mim um mokuteki (intenção, objetivo) a partir do nascimento dos meus filhos: Sílvia (1981), Pedro (1985); meus netos: Helena (2015), Tomás (2016), Daniel (2018) e Raul (2021) que representam o milagre da minha Vida.

A minha escrita será o pequeno legado que deixo para os descendentes diretos e para aqueles que virão futuramente e ilustro com a frase atribuída ao filósofo grego Heráclito de Éfeso: “Tudo flui, nada persiste, nem permanece o mesmo. O ser não é mais do que o vir a ser”. Para ele, só a mudança e o movimento são reais e a identidade das coisas iguais a si mesmas é ilusória: para ele tudo flui. Ironicamente, dizem que o esquecimento faz parte da Vida. Então me pergunto: Será que podemos impedir ou retardar esse processo? O que foi relevante para mim?

Tive um sonho que me ajudou a refletir a respeito:

Estava sentada segurando uma folha de papel rabiscada, garatujas que não conseguia enxergar direito e para piorar, as lentes dos meus óculos estavam sujas. Surge do inesperado, uma anciã que retira os meus óculos, dá uma limpada e me devolve e ao colocá-los consegui diferenciar caracteres orientais dos ocidentais. E aí despertei....

Daquele sonho, brotou o desejo de compreender para ressignificar a minha existência: nasceu o meu mokuteki – o de historiar a minha origem antes que ela se apague e seja sugada pelo “buraco negro”.

O meu nascimento aconteceu em 1950 a partir dos meus pais, imigrantes japoneses, que se conheceram através de miai-kekkon e se casaram aqui no Brasil, na Cidade de São Paulo, em 1949.

Na minha certidão de nascimento consta Glória Megumi Omori nascida aos 12 de julho de 1950, filha de Midori Omori e Mutsuho Omori, avós maternos Masaru Matsumoto e Fujie Matsumoto e avós paternos Jinkichi Omori e Kimiye Omori etc... e a partir de 1979 mais o Mendonça pelo casamento.

Tenho dois prenomes: Glória, inspirado ao nome da tinturaria dos familiares maternos que, segundo a minha mãe, já haviam pesquisado sobre o significado (honra, auréola, bem-aventurança) e o registraram. E o segundo prenome: Megumi (bondade, graça, caridade, favor) estaria o mais próximo o da língua japonesa.

Soube mais tarde que o meu pai foi “voto vencido”, pois ele queria me registrar Vitória, mas prevaleceu Glória. E após dirimirem essa divergência é que eu fui registrada no dia 12 e não no dia 9 de julho. Assim, o meu aniversário pode ser comemorado em duas datas (de fato e a oficial), de fato nasci no dia 9 de julho para os familiares e os mais próximos e para o mundo externo (colegas e amigos de escola e do trabalho, documentos etc.) o dia 12 é a data oficial.

Os meus familiares além de comemorarem o meu aniversário no dia 9 de julho, me tratam até hoje como Megumi-tian, momento em que sou identificada como fazendo parte da cultura japonesa, cuja maioria desconhece que no mundo exterior o meu prenome é Glória e que muitas vezes o “m” de Megumi aparece abreviado e após o casamento o “o” de Omori se transformou em uma simples vogal e nesse caso surge uma questão “shakespeareana”: SOU ou NÃO SOU.... “Japa” ou “Brazuca”?

Qual seria a minha identidade verdadeira?

Glória Megumi,

Glória Megumi Omori,

Glória M. Omori,

Glória Omori,

Glória Megumi Omori de Mendonça,

Glória M. O. de Mendonça,

Glória Mendonça?

Confesso que a vida inteira vivi dentro dessa ambiguidade quanto à nacionalidade: Japonesa ou Brasileira?

A minha aparência física, o meu fenótipo é determinante: sou de cor amarela, cabelos pretos, hoje grisalhos, olhos amendoados, nariz curto asiático e que talvez possa ser confundida com algum outro grupo étnico de traços asiáticos (coreano, chinês, filipino, tailandês e outros). No entanto, se desconsiderarmos a minha aparência física, apenas a linguagem oral, ela é totalmente “abrasileirada”, sem qualquer sotaque que denuncie uma nacionalidade diferente e o mesmo ocorre com a escrita.

Pelas leis japonesas que adotaram o “jus sanguinis”, eu seria Cidadã Japonesa, pois os meus pais são legítimos japoneses e se eles tivessem me registrado no Consulado ou Embaixada Japonesa e isso não ocorreu. Como eu nasci em solo brasileiro, a Constituição Brasileira de 1988, em seu artigo 12, diz que: 

ARTIGO 12. São brasileiros:

I – natos:

a) Os nascidos na República Federativa do Brasil, ainda que de pais estrangeiros, desde que estes não estejam a serviço de seu país

Deixando de lado, esta polêmica entre o Jus Sanguinis e o Jus Solis, a verdade é que essa “ambiguidade” faz parte, desde o meu nascimento, quando escolheram o meu prenome composto: Glória Megumi, já carreguei um “Q” de “japonicidade” dentro da Grupo Ocidental e um “Q” de gaijin (não japonês, estrangeira) no Grupo Oriental e aos poucos vou descobrindo que tenho uma identidade “híbrida”, o que é comum num país como o Brasil que acolhe imigrantes de todas as nacionalidades, onde qualquer grupo étnico vai se adaptando aos poucos para sobreviver, tentando preservar a sua cultura original e assimilando a outra que acolheu os seus familiares. 

Eu me pergunto se isso é possível, manter a civilidade, dentro do respeito e com gratidão?

Hoje, no mundo contemporâneo estamos testemunhando um grande retrocesso das nações e dos povos, lutas e guerras que envolvem ideologias políticas e religiosas manipuladoras que se aproveitam de uma mídia desinformada que propaga “fake news” com o intuito de destruição. Realmente, eu não entendo como chegamos a esse ponto!

Esquecemos que a origem do homem atual (nós) descende do homo-sapiens, que somos sobreviventes de um processo evolutivo surgido há cerca de 200 mil anos no continente africano e que não existe uma “raça pura”, “superior” ou “inferior”, que essa adjetivação está sendo utilizada de forma desvirtuada, com outras intenções.

Ressalto que a população brasileira desde o seu “descobrimento” no ano de 1500 pelos portugueses foi e ainda está sendo formada por imigrantes das mais variadas etnias e a vinda de japoneses a partir de 1908 e os meus familiares vieram por motivos atípicos e particulares: uma foi política e a outra em razão de endividamento por jogos, os Omori em 1927 os Matsumoto em 1937.

Ao se admitir que a identidade possa estar ligada ao “pertencimento” do lugar onde se vive, eu concluo que me sinto ser mais uma brasileira com traços orientais, buscando resgatar aos poucos a cultura japonesa de seus ancestrais, participando de atividades e eventos especiais, leituras, grupos de estudos, filmes e outras modalidades ligadas à cultura japonesa para deixar um pequeno legado para os meus descendentes.

Este é o meu mokuteki.

 

© 2024 Glória Megumi Omori de Mendonça

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About the Author

Glória Megumi Omori de Mendonça é nissei brasileira, com formação acadêmica em Ciências Sociais e Direito (USP). Exerceu a advocacia especializada em direito civil, família e sucessões. Atualmente aposentada, associada-colaboradora do Nikkei Bungaku do Brasil.

Atualizado em novembro de 2024

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