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A Tradição do Oshogatsu para os Nikkeis no Japão

Ichigo Daifuku

No Japão, existem antigas tradições que remontam a centenas de anos, como o hanami1 na primavera, comer unagi2 no verão, comprar um kumade3 no outono e, é claro, o osechi4 de Ano Novo no inverno. Existem ainda tradições mais recentes, como os pratos do KFC no Natal. Além disso, existem as tradições pessoais; por exemplo, no final do verão eu sempre faço uma última visita ao supermercado para estocar Suika Bars5, já que elas só estão disponíveis no verão e, todos os anos, no começo da primavera, eu me encho de ichigo daifuku6.

Tem algo bastante tradicional no que toca às tradições; ou seja, para aqueles que cresceram e tiveram experiências próprias com a cultura japonesa, seguir algumas dessas tradições é atarimae (normal). No entanto, há muitas pessoas que podem não ter tido o mesmo contato com essas tradições – como os nikkeis morando no Japão.

Miwa

Há muitos nikkeis que moram no Japão – de fato, depois do Brasil e dos Estados Unidos, a maior população nikkei se encontra no Japão.

Então, como são as tradições de Ano Novo para os nikkeis morando no Japão? Perguntei a alguns deles para descobrir a resposta.

“Quando eu cheguei no Japão pela primeira vez, fiquei com muita saudade de casa no meu primeiro Ano Novo. Eu me lembro de passar o dia com um(a) amigo(a) do México”, diz Miwa, uma nikkei sansei. No Paraguai, os seus avós seguiam todos os costumes e tradições – bater mochi, fazer ozoni7, comer osechi. Não era exatamente como no Japão, mas eles se viravam com o que conseguiam encontrar.

Família de Miwa no Paraguai celebra o Ano Novo com osechi e asado

Miwa mora no Japão há cinco anos, inicialmente como estudante. Tendo crescido no Paraguai, ela não seguiu muitas das tradições dos seus pais, preferindo ir às festas de Ano Novo vestida de branco. Apesar dos seus anos de estudante no Japão não terem sido nada tradicionais (com exceção do esporádico prato de ozoni), depois de se formar, a família do seu namorado japonês fez a haka-mairi8 e preparou osechi, e Miwa parece ter se sentido à vontade de participar dessas tradições familiares. “Fui à casa dos pais do meu namorado e comi muito”, ela lamenta rindo.

Myho

“Eu normalmente trabalho!” diz Myho, uma nikkei brasileira. Como não observava nenhuma tradição, o Ano Novo era um ótimo dia para receber um pagamento extra por trabalhar no feriado. “Um ano, eu tentei fazer a hatsumode9, mas não gostei porque estava muito cheio e não senti nenhuma ligação com aquilo. Eu me casei esse ano, e pela primeira vez vou [passar o Ano Novo] na casa do meu marido (japonês), mas ainda não sei como vai ser. Ele diz que a mãe dele prepara o osechi e que vai ser tudo bem tradicional, mas essa vai ser a minha primeira vez participando de um Oshogatsu tradicional”. Ela dá um sorriso tímido. “Eles são muito tradicionais, mas também sabem que eu sou de outro país, então eles não esperam que eu tenha um comportamento tradicional.”

O pai issei de Myho imigrou para o Brasil após a guerra, mas eventualmente retornou ao Japão como decasségui10, levando consigo Myho e a mãe brasileira da menina. Myho tinha seis anos na época e passou a maior parte da sua vida no Japão. Tendo sido criada apenas pela mãe, não havia uma presença japonesa na sua casa para transmitir a cultura japonesa – não que o seu pai fosse lá muito tradicional.

“A primeira vez que eu ouvi falar do preparo do osechi ryori foi quando eu estava trabalhando num emprego sazonal numa fábrica fazendo produtos para as lojas de conveniência 7-11. Eu até fiz osechi como parte do meu trabalho na fábrica – sashimi de salmão em formato de rosa e kuri-kinton11. Eu trabalhei nisso durante algumas temporadas no final do ensino médio e no começo da universidade”.

Como era de se esperar, as suas tradições de Ano Novo são aparentemente tradições brasileiras – comer uvas e dar o primeiro passo depois da meia-noite com o pé direito – mas ela não tem certeza. Ela tem ainda mais uma tradição – oosoji12, mas isso é comum em muitas culturas, ela diz.

O pai de Myho não se preocupou muito em manter tradições, então Myho hoje se considera bastante não-tradicional, mesmo tendo vivido uma parte muito maior da sua vida no Japão do que eu ou Miwa. “Às vezes, eu sinto como se as tradições japonesas fossem mendokusai (pesadas)”, ela diz.

Osechi que preparei quando celebrei o Oshogatsu pela primeira vez no Japão

Para terminar, essas são as minhas tradições: o meu primeiro ano no Japão foi muito parecido com o de Miwa – foi um Ano Novo muito solitário. Eu me lembro de comprar apenas as partes do osechi que eu gostava de comer, e de fazer ozoni e soba de toshikoshi13 inspirados nas minhas memórias de infância.

Eu mais tarde me casei com uma japonesa e passei a observar as tradições da família da minha esposa. Além do soba/ozoni/osechi de praxe, uma das tradições mais interessantes que temos é cortar as unhas antes do Ano Novo. Parece que tem até um ukiyo-e retratando essa prática; ou seja, ela já existe há algumas centenas de anos.

Toshikoshi soba

Curiosamente, todos os nikkeis com quem conversei estão em relacionamentos com pessoas nascidas e criadas no Japão. E é claro que a família tem uma grande influência nas tradições que escolhemos adotar. Mas também tem importância o fato de morarmos aqui – um amigo me disse que "ver todas as tradições do Japão me fez querer me conectar mais com a minha cultura chinesa. Então eu passei a fazer bolinhos cozidos no Ano Novo".

Uma das vantagens de ser nikkei é que você pode criar as suas próprias tradições. Você pode misturar as coisas, e escolher as partes de cada cultura que quiser manter. E apesar de não ser paraguaio, asado [churrasco] no Ano Novo me parece algo delicioso. E acho que vou passar a comer uvas também.

No final das contas, as tradições são intrinsecamente pessoais e nós mesmos escolhemos aquelas que vamos manter. E não é preciso que sejam as suas próprias tradições, nem tampouco as tradições herdadas através da família da pessoa com quem você tem um relacionamento. E também não importa se as tradições foram herdadas ou adotadas recentemente, ou se foram transmitidas através de gerações – da mesma forma, você é nikkei quer você seja da primeira ou da décima geração. Essas particularidades não diminuem o significado das suas tradições desde que elas tenham um significado importante para você.

Boas festas e 明けましておめでとう!

Notas:

1. Hanami: Festival de contemplação das cerejeiras em flor.

2. Unagi: Enguia. No Japão, é costume comer enguia nos dias quentes de verão.

3. Kumade: Ancinho de bambu. Kumade é um amuleto da sorte para se obter uma boa colheita. Ele também representa arrecadar “montes” de sucesso, riqueza e boa sorte. Decorações com kumade podem ser encontradas no Japão durante o outono e até mesmo no Ano Novo. Ref.: “Kazari Kumade” (Japan Travel); “Japanese Kumade: Rake In Luck and Good Fortune” (Kumade Japonês: Acumule Sorte e Boa Fortuna) (Wonderland Japan WAttention).

4. Osechi: Pratos de Ano Novo.

5. Suika Bar: Picolé de melancia.

6. Ichigo daifuku: Uma variação de mochi com morango e recheio adocicado, geralmente anko, dentro de um bolinho mochi. (Wikipedia.com)

7. Ozoni: Sopa de mochi.

8. Haka-mairi: Visita a um túmulo.

9. Hatsumode: Primeira visita a um santuário ou templo no ano novo para expressar gratidão pela saúde e felicidade no ano anterior e rezar para mais um bom ano.

10. Decasségui: Trabalhador(a) migrante, especialmente aqui, descendentes de japoneses de países latino-americanos que migraram para o Japão para trabalhar por um curto período. No entanto, muitos nikkeis decidiram se estabelecer permanentemente no Japão.

11. Kuri-kinton: Purê de batata-doce com castanhas-doces, simbolizando boa sorte financeira e riqueza.

12. Oosoji: Limpeza geral de fim de ano.

13. Soba de toshikoshi: Soba, macarrão de trigo sarraceno, servido antes da meia-noite na véspera de Ano Novo para rezar por uma vida longa e por prosperidade no ano que começa.


Referências

Ukiyoe tsumekiri: 七草爪・七種爪 (Nanakusazume)

 

© 2023 Mike Omoto

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About the Author

Michael Omoto é um Nikkei Yonsei de Los Angeles, que dividiu sua vida adulta entre o Japão e os Estados Unidos. Na Universidade de California, Irvine, formou-se em Psicologia e formou-se em Filosofia. Depois de alguns anos como professor de inglês no Japão, ele estudou Engenharia de Software, ingressou em uma startup no Vale do Silício e agora voltou ao Japão para trabalhar em uma conhecida empresa de tecnologia.

Mike é voluntário do Descubra Nikkei e trabalhou extensivamente no site Descubra Nikkei como principal líder técnico. Atualmente, ele está assessorando uma reformulação em grande escala do site. Ele também participou da COPANI XIX no Peru e ajudou a preparar para a COPANI XX enquanto morava em San Francisco como parte do comitê organizador.

Mike passa seu tempo livre defendendo a diversidade na indústria de software, jogando bilhar, tocando piano e violão, viajando e apreciando boas comidas.

Atualizado em dezembro de 2022

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