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Carnaval, carnaval!

A rainha do carnaval do final dos anos 1950 e início dos anos 1960. Foto: família Kakutani-Shirasaka.

“Vamos todos rir e curtir, vamos todos curtir o carnaval, mascaritas vamos dançar em ritmo triunfante. Vamos alegrar o Vice-reinado Lima, nossas Rainhas vão se divertir, e suas risadas vão nos animar no carnaval. Carnaval, carnaval! é o grito geral. Carnaval, carnaval, que alegria sem igual!”  

O passado é uma festa ligada ao carnaval. Quem quando criança não brincou com granulado, talco, serpentina, pica pica, raspadinha, balões e o balde de água? O carnaval é uma brincadeira que quando crianças nos fez ver respeito nos outros. “Não estou brincando, só estou de passagem!” E o homem passou sem se molhar. Anos depois, tudo mudou. Foi uma quarentena para quem não quis brincar e um delírio para todos nós que, tendo autorização, íamos de qualquer ângulo para desperdiçar água, balões, betume e tudo o mais que pudéssemos pintar e manchar.

Soichi Yanahura era três anos mais velho que eu e nós dois fomos direto para um lugar chamado Martineti. Eu tinha seis anos na época e as linhas de trem ficavam ao fundo. O famoso lixão nos deu a oportunidade de montar nossos torpedos durante o carnaval. Aquelas que eram atiradas no âmbito da brincadeira e onde o talco perfumado combinava com a farinha que estava sempre na cozinha. As duas pontas precisavam de cartão e naquela lixeira municipal uma gráfica próxima deitava fora os seus resíduos em papelaria e a magia do verão fez-nos ver que este serviria para os preciosos torpedos.

Dois anos depois já era residente na cidade de Jauja. Tudo mudou repentinamente naquele mês de novembro de 1948. Uma viagem repentina e uma estadia à qual tive que me acostumar de qualquer maneira. Os carnavais foram diferentes a partir de então. Tendo que esquecer que a banheira não tinha o mesmo serviço e entender que o clima de Jauja não era dos mais propícios para um balde de água e muito menos para um banho em banheira de mármore. Devido ao frio e à geada, as montanhas não se prestavam a esse tipo de brincadeira e apenas os balões com uma certa anilina eram projécteis que procuravam o sexo feminino. A maior brincadeira carnavalesca foi apresentada no Cinema Teatro Colonial.

Lá não era interessante qual filme eles exibiam, mas sim o intervalo do show. Depois dos noticiários e dos pequenos comerciais, as luzes se acenderam e a cativante música de carnaval soou nos alto-falantes. A galeria, varanda ou cazuela, como quisessem chamar, era o local preferido para lançar os torpedos, lançar a lança e lançar as serpentinas. Em um minuto a sala de teatro estava com uma atmosfera branca e perfumada, os corredores da sala eram uma folia. As meninas também tinham coisas próprias, vinham com as máscaras na bolsa e algumas coisas das marcas Colombina ou Pierrot com seu estojo de papelão.

Quinze minutos de intervalo e a sala do Teatro Colonial continuou com a neblina e a melodia do carnaval. Ao primeiro aviso para apagar a luz para iniciar o filme, a galeria trovejou com mais serpentinas, os torpedos continuaram chegando ao seu destino e a sala voltou a ser preenchida por uma densa névoa de pó de talco perfumado. A operadora só teve que prolongar o intervalo por mais cinco minutos e os aplausos e a gritaria continuaram. Vinte minutos e o filme começou definitivamente, o feixe de projeção era uma imensa coluna na qual todos na galeria colocavam as mãos e os apitos eram uma resposta clara ao nosso primeiro dia de carnaval. Faltavam mais dois dias, sem contar a Quarta-feira de Cinzas.

A pequena cidade de Jauja foi o meu mundo de infância, andar pelas suas ruas era como se andasse por um caminho de terra e cimento. As bacias hidrográficas formavam pequenas poças e eram, nos dias de carnaval, a fonte digna de encher os balões ou de ter em mãos o primeiro pote roubado de casa. O que sentíamos era que as senhorinhas se destacavam pela sua ausência e que a chuva era uma cortina para se agarrar mais às paredes das suas casas adormecidas que cochilavam naquele mundo infantil dos meus passos pela cidade. Foram tantos momentos felizes e até hoje minha visão tende a chorar na solidão.

No meu último ano em Jauja, e já com vinte anos, decidi, como nunca tinha feito antes, dançar numa “corta monte” da cidade. Meu último ano, disse a mim mesmo. E procurei uma jaujina como parceira. Naquele dia, enquanto o grupo de dançarinos passava pelas portas do restaurante, meu ritmo com meu companheiro era tão acentuado que os garçons e cozinheiros saíram para assistir. Fintei e quando me virei com meu parceiro quase caí de joelhos. As risadas foram totais e a vergonha de dançar pela primeira vez na rua me fez sentir que a árvore daquela tarde seria minha, pois a derrubei com o primeiro golpe de um machado que me atingiu atrás do meu companheiro. Aí tomei consciência e me arrependi, pois se eu derrubasse a árvore no ano que vem eu seria o padrinho e arcaria com a maior despesa.

Jauja era talvez naquela época a cidade andina com mais festivais do calendário e com um impressionante recorde de consumo de cerveja. O jornal La Prensa da época, em sua página de províncias, publicou uma matéria mencionando as cidades com maior consumo de cerveja no carnaval. Lima e Callao foram as duas cidades em primeiro lugar, depois veio Jauja. Incrível para uma cidade tão pequena. Mas era assim que os Jaujinos eram quando celebravam suas festas, esqueciam de tudo menos da diversão. E eu estava naquela tarde com minha garrafa de cerveja na mão e com minha linda camponesa dançando meu huayno pelas ruas. A banda de músicos atrás de nós era a seguidora de todo o grupo, que carregava o ritmo, o folclore, a paixão e o encontro com a árvore coberta de presentes e serpentinas na pracinha do bairro La Libertad.

Representando a colônia japonesa sediada em Lima, Capital. Foto: família Kakutani-Shirasaka.

Naquela década, Jauja contava com duas Rainhas Nikkeis em suas festas de Carnaval. Benigna Higuchi foi coroada num Baile de Carnaval no cassino da cidade e, anos depois, Margarita Higa, no Clube Nisei Jauja. Corria o ano de 1959 quando os Nisei Huancaínos, em um ônibus lotado, estiveram presentes em nossa festa de carnaval, acompanhados pelo Sr. Víctor Aritomi, presidente da Associação Nacional Nisei Huancayo, e onde, entre outras, estavam as Rainhas de Huancayo: as senhoras Guillermina Uchida e Teresa Nakahodo. Foi uma noite inesquecível na comunidade Nikkei das duas cidades. Uma irmandade que durou muitos anos entre as duas províncias do Vale do Mantaro.

Há poucos dias, através do WhatsApp, minha amiga dona Rosa de Nomura me enviou um vídeo que me fez lembrar o mês dos carnavais e um bilhete onde nomeava as Rainhas do Carnaval dos anos cinquenta e sessenta, as corsas daquela época e os concursos para escolher as rainhas. Giuliana D'Onofrio, Bebelu de la Borda, Ena Hilbeck e as belas rainhas e damas da comunidade Teresa Shimazaki, Bertha Shirasaka, Juana Nakamoto, entre outras senhoras de antigamente.

Señorita Bertha Shirasaka (después esposa del señor Kakutani). Foto: la familia Kakutani-Shirasaka.

Hoje, quando olho para a minha varanda, a Lua esconde de mim o olhar com uma parte do rosto. O silêncio é completo nesta noite de pandemia e as árvores da AELU parecem-me distantes. Mas na minha imaginação coloco serpentinas, bonecos, balões inflados, pacotes de bombons, chocolates e biscoitos, chaveiros e mais serpentinas para parecer que é carnaval. Imagino que a madrinha terá o machado para colocar seu arco e que a orquestra “Los Aborrecidos del Mantaro” tocará os acordes de um huayno da época. O sol se porá numa tarde de montanha e os casais dançarinos enfiarão o machado na casca da árvore, gota a gota, a seiva se espalhará, enquanto a terra se injetará com cerveja e suor.

E quando a noite se aproxima, a árvore curva os ramos, a multidão grita os seus presentes, o padrinho entrega a alma ao tronco desajeitado e, como quem corta o cordão umbilical, a árvore em agonia cai de bruços na terra. A noite terá encerrado seu terceiro dia de carnaval. Amanhã será quarta-feira de cinzas.

© 2021 Luis Iguchi Iguchi

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About the Author

Luis Iguchi Iguchi nasceu em Lima em 1940. Foi colaborador nos jornais Perú Shimpo e Prensa Nikkei. Ele também contribuiu para as revistas Nikko, Superación, Puente e El Nisei. Foi presidente fundador do Club Nisei Jauja [lugar mítico de abundância e prosperidade] em 1958 e membro fundador do Corpo de Bombeiros Jauja N° 1 em 1959. Ele faleceu em 7 de novembro de 2023.

Atualizado em dezembro de 2023

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