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Escobar: A Capital da Flor e os seus 90 anos de imigração japonesa - O meu reencontro com as minhas raízes

A cidade de Escobar – situada a 50 km ao norte da cidade de Buenos Aires, a capital da República Argentina – é conhecida como a Capital Nacional da Flor1. Todos os anos, desde 1964, é realizado no mês de outubro o Festival Nacional da Flor, e além do concurso de flores e plantas que chegam de diversas partes do país e do exterior, também é realizado o desfile de carros alegóricos enfeitados com muitas flores e a eleição da Rainha da Flor2. Durante as duas semanas do evento chegam centenas de milhares de visitantes de todas as partes, e por isso o comércio local aguarda ansiosamente a chegada de outubro. Vale lembrar que Escobar tem um pequeno mas autêntico Jardim Japonês3, o qual, inaugurado em 1969, é uma das atrações mais famosas da cidade.

Festival da Flor de Escobar; carro alegórico da AJE; 50º Aniversário do Jardim Japonês de Escobar; Grupo Japonês de Gateball (o meu pai e os seus companheiros de time, 2017).

A floricultura emblemática de Escobar é fruto do trabalho do engenheiro agrônomo japonês Kuhei Gashu, natural de Hokkaido, no norte do Japão, e especialista no ramo. Ele chegou e se estabeleceu em Escobar em 1929, apesar da sua chegada na Argentina ter ocorrido em 1918, aparentemente vindo do Chile após cruzar a cordilheira dos Andes. No princípio, ele se estabeleceu em Mendoza, conhecida pela sua produção de vinhos, mas poucos anos depois ele podia ser encontrado na cidade de Buenos Aires, no bairro de Belgrano, abrindo um negócio de flores e plantas. Nos seus primeiros quase dez anos no país, Kuhei buscou o lugar mais adequado para o cultivo de flores; depois de conduzir estudos do solo, clima, etc., concluiu que Escobar possuía terras férteis e que não havia baixadas com risco de inundação4. E assim foram chegando Koike, Hisaki, Honda, Nakanishi, Watanabe e outros que formaram o grupo de pioneiros japoneses em Escobar. E assim Escobar foi se transformando num importante centro produtor da floricultura argentina.

Vale lembrar que Escobar já tinha uma estação ferroviária no final do século XIX; à vista disso, com o aumento da produção de flores, fizeram uso deste meio de transporte para enviar flores frescas à capital. E com o propósito de aprimorar a sua comercialização, em 1942 os japoneses formaram uma cooperativa de floricultores com produtores italianos e portugueses. No pós-guerra, já se aproximando dos anos 70, quando o volume de flores frescas aumentou consideravelmente, caminhões de carga passaram a ser usados com o objetivo de levar diretamente as embalagens em grandes cestos para o mercado central das flores. Tanto Gashu quanto os demais pioneiros não se esqueceram da criação de uma associação japonesa, escola de língua japonesa, cooperativa, newsletters e outras atividades sociais e institucionais que permitiram ampliar a cooperação com os demais conterrâneos de outras áreas na Grande Buenos Aires.

O meu pai chegou em Escobar em 1961, quando se casou com a minha mãe; mas ele havia chegado na Argentina em 1957, como técnico agrícola do Ministério das Relações Exteriores do Japão. Em 1956, o meu pai tinha assistido uma palestra da esposa de Kuhei Gashu, a Sra. Shizuko, no Instituto de Treinamento e Desenvolvimento Tecnológico do Ministério da Agricultura, localizado em Kanagawa, onde ele estava estudando. Graças à recomendação do seu professor e tendo cumprido todas as exigências do governo argentino – que não recebia colonos japoneses em grande escala – pôde emigrar para a Argentina. Durante os primeiros quatro anos, ele trabalhou na horta de um okinawano em Vicente Casares (na Província de Buenos Aires); ao se casar, ele fincou raízes em Escobar com a ajuda de conterrâneos sempai como Hosokawa e Hirai, os quais já se dedicavam à floricultura. Ele sempre diz que pôde contar com os conselhos e recomendações de Kuhei e com o apoio da família Gashu5.

Eu também tive o prazer de conhecer e aprender muito com esta família, pois a filha de Kuhei, Teresa, foi a minha professora de geografia no ensino médio. (Mais tarde, ela se tornou diretora.) E quando vim com uma bolsa para estudar no Japão, pude conhecer e firmar uma afável amizade com a advogada e fotógrafa Irene Gashu6, neta de Kuhei. Com ela, como também com o Gustavo, que é médico e outro neto de Kuhei, mantenho essa relação; e eles são pessoas muito respeitadas pessoal e profissionalmente7.

Dra. Irene Gashu (advogada); reunião informal de formatura do ensino médio (no meio da última fila está a Prof. Teresa Gashu, que já era a diretora do colégio, 1979); Dr. Gustavo Gashu (médico); a família Hisaki e a bisneta Josefina (2017); Colégio São Vicente de Paula; Verónica Koike e Abril Koike (as duas como bolsistas da JICA).

Nasci em 1962; Escobar já era uma cidadezinha próspera e em contínuo crescimento. Naquela época, havia por volta de 140 famílias japonesas e a comunidade consistia de umas 400 pessoas. A associação se chamava Clube Belén e a sua escola japonesa era uma das mais exigentes e qualificadas da comunidade nikkei argentina. Durante o ensino fundamental, eu tinha aulas de japonês todos os dias, como também na escola argentina, onde quase um terço dos alunos da classe eram nikkeis (descendentes de japoneses). Na escola japonesa trabalhavam os professores Kawano-Sensei, um casal que morava lá e se revezava para nos dar aula da 1ª à 6ª série. Além de aprender o idioma e o kanji (ideograma), tínhamos atividades culturais e esportivas como nas escolas do Japão. Pois então, graças aos esforços dos pioneiros e dos nossos pais, tivemos a sorte de usufruir de uma educação quase bilíngue8.

Ao passo que a nossa integração à sociedade escobarense foi se ampliando, aumentou o apreço geral pelos japoneses, permitindo que também prosperassem as atividades do Festival da Flor e outros eventos. Apesar de não ter ocorrido uma participação política muito notável dos nikkeis em Escobar, não se pode deixar de mencionar que o filho mais velho de Kuhei, Angel Kiyoshi, ocupou diversos postos na administração municipal e nacional, e mais tarde se tornou legislador nacional9. E o segundo filho, Alberto, um contador público, foi Conselheiro Econômico na Embaixada da Argentina em Tóquio.

Poucas décadas depois, vários nikkeis de Escobar com ótimo domínio do idioma japonês tomaram parte – como intérpretes, técnicos e engenheiros – no trabalho de eletrificação da Linha Roca, realizado por empresas japonesas; nos anos 90, conseguiram mais uma vez contribuir com bons recursos humanos na fábrica da Toyota em Zárate10. No entanto, o passar das gerações e os casamentos mistos formaram uma comunidade mais diversa na qual nem sempre é fácil de continuar o ensino da língua japonesa.

Em todo caso, seja pelo lado cultural ou como consequência de novas curiosidades, os nikkeis da terceira e quarta gerações têm grande interesse nas bolsas de estudo da JICA para que possam ser treinados numa especialidade e para aprender sobre a terra dos seus ancestrais. Nas aulas de orientação que dou na JICA Yokohama, tenho a sorte de conhecer jovens nikkeis de Escobar que vêm de famílias conhecidas, ou que foram meus colegas de escola do ensino fundamental. Tive até a agradável surpresa e alegria de conhecer os netos de amigos, como foi o caso com as famílias Koike e Hisaki.

Atualmente, a cidade de Escobar tem 55.000 habitantes e o Partido [subdivisão administrativa da Província de Buenos Aires] tem 220.000, o que faz com que seja uma importante localidade na Grande Buenos Aires. Em 2019, no censo realizado como parte do projeto comemorativo dos 90 anos da imigração japonesa, foi possível saber que moram em Escobar cerca de 300 nikkeis, dos quais foi possível identificar 50 da primeira geração, issei; 144 da segunda, nissei; 149 da terceira, sansei; 84 da quarta, yonsei; e 3 da quinta, gossei11. Alguns nisseis e sanseis continuaram a trabalhar com flores e hortaliças, mas aqueles que permaneceram no ramo se dedicam mais às plantas.

Em novembro de 2019, foi realizada uma cerimônia e banquete nas instalações da Associação Japonesa de Escobar comemorando a chegada de Kuhei Gashu à cidade – ou seja, pelos 90 anos da imigração japonesa. Encontravam-se presentes dignitários e nikkeis que haviam contribuído para o progresso da comunidade, como também aqueles da própria cidade de Escobar. Este evento foi declarado de interesse público tanto pelo município quanto pelo governo12.

E de Yokohama, onde moro, fiz um pequeno brinde aos pioneiros como Kuhei Gashu, sem deixar de agradecer pelos encontros e reencontros com os amigos de Escobar, mesmo morando no Japão.

Festa Comemorativa dos 90 anos da Imigração Japonesa em Escobar; Kuhei Gashu nos anos 50 (foto por cortesia da sua neta, Irene Gashu); evento na Associação Japonesa de Escobar; 2ª série do ensino fundamental (eu e meus colegas nikkeis formamos quase um terço da classe).


Notas: 

1. Canio Nicolás Iacouzzi (Rotary Club Escobar), o Festival da Flor, escobarsite, 10/5/1983.
Fiesta de la Flor (site oficial).

2. A primeira Rainha da Flor do Festival da Flor foi a nikkei escobarense da 2ª geração (nissei), Ester Yoshimiya. Devido à pandemia, neste ano de 2020 o festival foi realizado virtualmente; a partir de 2021, parece que a rainha vai ser uma Embaixadora da Amizade.

3. Ciro Jacuzzi, um clássico que não perde o charme: 50 anos do Jardim Japonês de Escobar, El Día de Escobar, 08/10/2019.
O que tem para ver em Escobar (turismo de Escobar)

Jardim Japonês de Escobar foi projetado e a sua construção supervisionada pelo engenheiro e paisagista Yasuo Inomata, formado pela Universidade Agrícola de Tóquio, e que chegou na Argentina em 1966. O jardim foi inaugurado em 4 de outubro de 1969 na ocasião dos 40 anos da imigração japonesa em Escobar. No ano passado (2019) foi comemorado o 50º aniversário do jardim, com a presença do intendente (prefeito) e funcionários do Partido de Escobar, como também do governo de Buenos Aires, o Embaixador Nakamae e o Cônsul Furukawa da embaixada de Japão, Roberto Hirose (presidente da Associação do Festival Nacional da Flor) e outros dignitários e personalidades de destaque. Naquela ocasião, Inomata foi reconhecido pelo seu importante trabalho. O jardim contou com importantes doações de imigrantes japoneses e dos amigos de Escobar, e posteriormente foi doado à cidade de Escobar, que atualmente é responsável pela sua manutenção.

- “O primeiro jardim japonês” (Escobar Web TV).

4. Kuhei Gashu não apenas se estabeleceu em Escobar por causa das ótimas condições para o cultivo de flores, como também contribuiu enormemente para a criação de várias instituições da comunidade e para a formação dos jovens das gerações seguintes. Ele foi condecorado pelo governo do Japão (Medalha do Imperador) e faleceu aos 90 anos em 1987.

5. “Colóquio dos Jovens Nascidos na Era Taisho Sobre Suas Experiências na Zona Norte de Buenos Aires”, livro comemorativo da Prefeitura de Kagawa pelos 35 anos da Associação de Conterrâneos de Kagawa na Argentina, pp. 3–44, editado pela Comissão dos Nativos da Prefeitura de Kagawa na Argentina, 2005.

6. Irene é filha do segundo filho de Kuhei, Alberto Gashu.

7. Gustavo é filho do filho mais velho de Kuhei, Angel Kiyoshi. Atualmente trabalha como médico intensivista no Hospital Militar Central da Argentina, e é um daqueles na linha de frente no combate ao coronavírus.

8. Na época que Kuhei Gashu chegou em Escobar, havia na cidade de Buenos Aires vários japoneses com boa formação intelectual e que se dedicavam aos negócios; entre eles havia um acirrado debate sobre a necessidade de ensinar ou não o idioma japonês, pois acreditavam que isso influenciaria a integração dos seus filhos na sociedade local. Kuhei e outros, como Keiya Komatsu e Fujitaro Arimizu, foram os que promoveram o ensino do japonês aos nisseis; os que se opuseram à ideia tinham como motivo questões políticas relacionadas à expansão colonial do Japão na Ásia e à tensão ideológica entre os próprios imigrantes. Escobar se destacou ao priorizar o ensino do japonês, e graças a essa postura formou nisseis e sanseis que conquistaram as primeiras bolsas de estudo no Japão e conseguiram trabalho em empresas japonesas e em projetos bilaterais.
Referência: Noriko Mutsuki, em artigo publicado na Rabei Kenkyu Nempo no. 29, 2009.

9. Angel Kiyoshi Gashu ocupou cargos públicos de importância durante o governo Perón, trabalhando como diretor da Secretaria de Assuntos Técnicos da Presidência da Nação (1952–54), diretor nacional de estatística e censos (1955) e deputado nacional da Província de Buenos Aires (1995–61, apesar de, como consequência do golpe de estado e da derrubada de Perón, ter passado apenas 6 meses como legislador). Mais tarde, atuou como auditor de contas da Bolsa de Valores da Província de Buenos Aires (1963–65) e como consultor de empresas nacionais e estrangeiras. Ele faleceu em 2 de agosto de 1985, aos 59 anos.

Fonte: Juan Pablo Biliera, História dos Povos do Partido de Escobar, Fermata Ediciones, 2001, pp. 197–199.

10. Empresas como a Marubeni e a Hitachi estiveram envolvidas na eletrificação ferroviária da Linha Roca; anos depois, a NEC teve forte presença como investidora na modernização do setor de telecomunicações. A fábrica da Toyota em Zárate está situada a cerca de 40 km ao norte de Escobar e exporta aproximadamente 30.000 unidades por ano, gerando cerca de 800 milhões de dólares em divisas. Desde 1979, foi produzido um total de 1 milhão de unidades.
- “Toyota atingiu um milhão de unidades exportadas da sua fábrica em Zárate”, Ámbito 3/8/2020.

11. Foi um censo realizado como parte deste evento comemorativo, através do qual pôde-se constatar que 285 nikkeis realmente moram em Escobar, observando que se forem incluídos os que residem em outras cidades e no exterior, chega-se a um total de 430 indivíduos. Também foi possível constatar que entre 1948 e 1949 várias famílias chegaram do Paraguai, e no período pós-guerra também chegaram de países vizinhos e do próprio Japão até por volta de 1970. Desde 1990, vários jovens nikkeis foram trabalhar no Japão e alguns permaneceram no país dos seus ancestrais.
Fonte: Informações fornecidas por Humberto Koike, Associação Japonesa de Escobar, 14 de outubro de 2020.

12. Vários meios de comunicação locais e da Província de Buenos Aires cobriram o evento comemorativo.
Escobar: 90 anos da comunidade japonesa”, Canal Provincial Noticias, 22/11/2019.

Associação Japonesa de Escobar (Facebook).

 

© 2020 Alberto Matsumoto

Argentina Buenos Aires Escobar floricultura Kuhei Gashu
About the Author

Nissei nipo-argentino. Em 1990, ele veio para o Japão como estudante internacional financiado pelo governo. Ele recebeu o título de Mestre em Direito pela Universidade Nacional de Yokohama. Em 1997, fundou uma empresa de tradução especializada em relações públicas e trabalhos jurídicos. Ele foi intérprete judicial em tribunais distritais e de família em Yokohama e Tóquio. Ele também trabalha como intérprete de transmissão na NHK. Ele ensina a história dos imigrantes japoneses e o sistema educacional no Japão para estagiários Nikkei na JICA (Agência de Cooperação Internacional do Japão). Ele também ensina espanhol na Universidade de Shizuoka e economia social e direito na América Latina no Departamento de Direito da Universidade Dokkyo. Ele dá palestras sobre multiculturalismo para assessores estrangeiros. Publicou livros em espanhol sobre os temas imposto de renda e status de residente. Em japonês, publicou “54 capítulos para aprender sobre o argentino” (Akashi Shoten), “Aprenda a falar espanhol em 30 dias” (Natsumesha) e outros. http://www.ideamatsu.com

Atualizado em junho de 2013

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