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História nº 32: A vida de decasségui durou apenas 5 meses

Mari não teve filhos, por isto, depois da morte prematura de seu marido, ela dedicou-se de corpo e alma ao trabalho.

Após concluir o magistério, começou a lecionar para os anos iniciais do ensino fundamental ao mesmo tempo que cursava a faculdade. Formada, casou-se e passou a lecionar Matemática numa escola da cidade vizinha e também ajudava o marido que era dono de um cursinho pré-vestibular.

Passados 11 anos, seu marido faleceu num acidente de trânsito e Mari ficou numa grande dúvida: “Agora que estou sozinha, será que conseguirei continuar trabalhando em escola?” Pois ela e o marido tinham se conhecido na faculdade, ambos gostavam muito de estudar e tinham um sonho em comum: poder transmitir para a maioria das crianças e jovens que estudar é uma atividade interessante e prazerosa.

Agora, ela não se sentia segura em prosseguir lecionando, e foi quando sua mãe lhe dirigiu palavras de encorajamento: “Mas como você diz uma coisa dessas? Você, que desde criança adorava ler livros e reunia a criançada da vizinhança para brincar de escolinha e agora, adulta, está com esse desânimo, essa falta de confiança?”. Seu pai também a incentivou.

Reanimada, Mari continuou lecionando quando lhe ocorreu de fazer uma enquete com os alunos perguntando “Qual matéria acha mais difícil?” e a resposta foi unânime: “Matemática e Português”.

Diante dessa resposta, ela decidiu estudar Português. Voltou à faculdade e licenciou-se em Língua Portuguesa e Literatura Brasileira. Em seguida, mudou-se para a capital de São Paulo e lecionou Português para as séries finais do ensino fundamental numa escola particular e Matemática para o ensino médio na rede estadual de ensino.

Como tinha começado a trabalhar aos 18 anos, aos 44 estava se aposentando, quando pensou: Como será esta nova fase de minha vida? Um dia, passeando pelo bairro da Liberdade, conhecido como Bairro Oriental, viu um senhor nikkei distribuindo uns folhetos. Era uma propaganda sobre emprego no Japão. Estavam recrutando pessoal para trabalhar numa fábrica de obento1 e macarrão japonês na cidade de Joso, província de Ibaraki.

Mari leu e releu o folheto com bastante interesse e, apesar de nunca ter pensado em trabalhar no Japão, achou que poderia encarar esse desafio. Lembrou que, na época em que trabalhava na cidade vizinha aonde morava, preparava obento para levar e seus colegas olhavam com curiosidade o tamagoyaki2 e o omusubi3 que pareciam apetitosos!

Mari começou a pensar seriamente em ir trabalhar no Japão, pesquisou e obteve diversas informações. Seria a sua primeira viagem ao Japão e um grande desafio na nova fase de sua vida.

Seus amigos se surpreenderam. “Mas, por quê? Você é sozinha, é livre para decidir o que vai fazer, se ainda fosse ao Japão passear, mas trabalhar...”

Mas Mari estava firmemente decidida e desembarcou no Japão no dia primeiro de abril de 2015. Era a época das cerejeiras em flor e tudo pareceu um sonho.

Dois dias depois começou seu trabalho na fábrica. Seus colegas eram nikkeis brasileiros e decasséguis vindos das Filipinas – todos muito compenetrados no trabalho.

Mari ocupava um apartamento antigo próximo da fábrica, junto com duas mulheres também do Brasil e, aos poucos, foi se acostumando à nova vida.

Quando chegou o feriado prolongado de maio, o casal de brasileiros que morava vizinho não tinha conseguido folga e perguntou a Mari se poderia tomar conta dos seus três filhos. Ela aceitou com alegria e ficou com as crianças, que frequentavam a pré-escola, o 1º ano e o 3º ano do ensino fundamental, respectivamente. Foi então que ela descobriu que no Japão havia escolas especialmente para crianças do Brasil, com aulas em Português e currículo igual ao das escolas do Brasil. Por isso, mesmo estando no Japão essas crianças não falavam japonês.

Dia 10 de setembro de 2015, havia dois dias que chovia intensamente em Joso. Mari saiu do trabalho às 16h30 e no caminho até o apartamento a água já estava na altura dos joelhos. Foi quando ela viu um grande número de pessoas andando apressadamente para a direção Sul. Nisto, alguém a puxou fortemente pela mão. Era Joy, um rapaz filipino que morava no mesmo prédio que gritou: “Vamos depressa para o abrigo”. Junto estavam a sua esposa que carregava um bebê no colo e duas crianças.

O abrigo era a quadra de esportes coberta de uma escola, onde muitos moradores estavam sentados sobre finos cobertores assistindo ao noticiário da TV ou deitados com expressão de cansaço.

O rio Kinugawa, que atravessa a província de Ibaraki, transbordou e provocou inundação na cidade de Joso. Edificações e plantações foram inundadas e 1/3 da área da cidade ficou debaixo d’água. Mais de 2.600 moradores tiveram de se abrigar em escolas e centros comunitários.

Mari ficou muito assustada, pois as cenas do Grande Terremoto do Leste do Japão que viu no Brasil em 2011 se repetiam, assim, na tela da TV e também à sua frente! E solidarizou-se com o povo japonês que tem de enfrentar desastres da natureza como terremotos, tufões e tsunamis chegando de repente.

Ela sentiu muita gratidão ao receber os alimentos que a equipe de voluntários distribuía aos desabrigados.

Tinha ouvido falar que a fábrica de obento iria reiniciar as atividades um dia e, apesar de sentir muito pelo proprietário e os funcionários que haviam perdido tudo, ela ficou com vontade de voltar ao Brasil o mais rápido possível. Estava com saudades de ver o sorriso de seus pais e amigos.

“Mas quero voltar ao Japão mais uma vez. E se tiver oportunidade, quero trabalhar numa escola para crianças brasileiras” – com esse desejo, Mari retornou ao Brasil um mês depois.

Notas:

1. Refeição de comida japonesa acondicionada em recipiente em forma de caixa

2. Omelete enrolada

3. Bolinho de arroz japonês geralmente em forma de triângulo e envolto em folha de alga, nori

 

© 2019 Laura Honda-Hasegawa

Brasil dekasegi ficção trabalhadores estrangeiros Nikkeis no Japão
Sobre esta série

Em 1988 li uma notícia sobre decasségui e logo pensei: “Isto pode dar uma boa história”. Mas nem imaginei que eu mesma pudesse ser a autora dessa história...

Em 1990 terminei meu primeiro livro e na cena final a personagem principal Kimiko parte para o Japão como decasségui. Onze anos depois me pediram para escrever um conto e acabei escolhendo o tema “Decasségui”. 

Em 2008 eu também passei pela experiência de ser decasségui, o que me fez indagar: O que é ser decasségui?Onde é o seu lugar?

Eu pude sentir na pele que o decasségui se situa num universo muito complicado.

Através desta série gostaria de, junto com você, refletir sobre estas questões.

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About the Author

Nasceu na Capital de São Paulo em 1947. Atuou na área da educação até 2009. Desde então, tem se dedicado exclusivamente à literatura, escrevendo ensaios, contos e romances, tudo sob o ponto de vista nikkei.

Passou a infância ouvindo as histórias infantis do Japão contadas por sua mãe. Na adolescência lia mensalmente a edição de Shojo Kurabu, revista juvenil para meninas importada do Japão. Assistiu a quase todos os filmes de Ozu, desenvolvendo, ao longo da vida, uma grande admiração pela cultura japonesa.

Atualizado em maio de 2023

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