Descubra Nikkei

https://www.discovernikkei.org/pt/journal/2019/3/6/cesar-tsuneshige/

Caesar Tsuneshige: Memórias e legados para durar

“É assim que um artista deve se sentir”, diz César Tsuneshige ao ser fotografado. É uma experiência nova para ele ser tema de uma sessão de fotos. Como veterinário, líder da comunidade nikkei e estudioso da história da imigração japonesa no Peru, costuma dedicar sua atenção aos outros. O fato de agora os holofotes estarem sobre ele o desorienta um pouco.

Durante seus dias de estudante. Tsuneshige é médico veterinário. (Foto: © Arquivo pessoal)

No entanto, ele também considera isso um reconhecimento. Isso significa que ele deixou sua marca. Foi um longo caminho percorrido.

Sétimo de oito filhos de uma família de imigrantes da província de Yamaguchi, herdou a vocação de serviço do pai Makoto, que foi médico da colônia japonesa de Callao, onde sempre morou. Em depoimento escrito ele se lembra do pai:

César Tsuneshige com seus pais e irmãos. Ele está entre as pernas do pai. (Foto: © Arquivo pessoal)

“Eles não tinham horário, pois na busca urgente, muitas vezes, de madrugada, invadiam a casa. E embora às vezes estivesse no melhor dos sonhos, ele nunca deixou de ajudar o paciente.”

Atendia em casa, mas também onde fosse necessário. “Ajudar os doentes nas fazendas era um trabalho importante, (eles tinham que) viajar em caminhões na escuridão da noite, por uma estrada de terra batida, a caminho dos animais de carga, onde a poeira e os montes os faziam pule e acerte a humanidade, até chegarmos à casa de adobe.”

Do pai também herdou o desejo de documentação. Arquive tudo. Para deixar um registo, para não esquecer, para o futuro. Ele folheia seus álbuns de fotos, olha para o passado, lembra dos pais e dos irmãos.

Dr. César Tsuneshige resenha um de seus numerosos álbuns de família (Foto: © APJ / Raquel Baldarrago)

Ele lembra, por exemplo, que durante a guerra sua mãe Sadako teve que vender seu precioso koto , motivo de grande angústia familiar devido à difícil situação econômica que atravessavam. Há, no entanto, uma lembrança feliz associada a ela: quando a acompanhei ao cinema. “Foi um prêmio”, diz ele.

Ele se lembra com gratidão do segundo de seus irmãos, Roberto, porque o ajudou muito nos estudos.

Ele lembra que quando tinha dois anos dois de seus irmãos foram enviados ao Japão para estudar. Ninguém poderia imaginar que pouco depois estouraria uma guerra que separaria a família para sempre. Ele nunca mais viu um deles porque morreu jovem. Ele se reuniu com seu outro irmão mais de 50 anos depois.

Ele se lembra, acima de tudo, de seu pai. Eles conversaram muito. Ao sair de casa, encontraria seu pai esperando por ele quando voltasse. Ele contou a ela o que tinha feito, com quem tinha estado. Gostava de conversar com ele e acredita que seu pai gostava de ouvir o relato detalhado de suas aventuras.

Com os olheiros (Foto: © Arquivo pessoal)

Não era comum naquela época haver aquele tipo de comunicação entre os austeros Issei que preferiam se expressar com ações e as crianças que obedeciam sem possibilidade de resposta.

Em sua juventude. (Foto: © Arquivo pessoal)

Ele se considera sortudo por esse nível de conexão com seu pai. “Tive sorte, deve ser porque sou o quinto (dos homens), quase um dos maricas.” A confiança permitiu-lhe, por exemplo, confrontar o pai: “Por que os outros têm jidosha (carro) e nós não?” “Você não raciocina”, diz ele agora, já adulto.

Suas memórias não se limitam à família. Quando menino, existia uma grande colônia japonesa em Callao e César Tsuneshige tem um mapa mental da cidade daquela época, repleta de lojas e casas de famílias japonesas. Basta citar o sobrenome para saber onde a família morava e quais negócios eles tinham. Tudo está arquivado na sua cabeça.

DESCOBRINDO A HISTÓRIA

Manter o formato tradicional de perguntas e respostas numa entrevista a César Tsuneshige é como tentar guardar um rio num copo. Assim, o melhor é dispensar qualquer recipiente e deixar as águas correrem livremente.

Uma de suas lembranças favoritas, à qual sempre volta, é a de sua gestão como presidente da Associação do Estádio La Unión (AELU) no início da década de 1990, um momento crítico para a comunidade Nikkei.

No auge do fenômeno dekasegi, havia pessoas muito pequenas e pessoas muito grandes no estádio. Faltavam os que estavam no meio: os jovens e os de meia-idade. Eles estavam no Japão trabalhando. A coisa foi tão grave que nos lembra uma competição esportiva em que havia apenas uma atleta na prova, competindo consigo mesma porque não tinha adversários.

Foi neste difícil contexto que César Tsuneshige, como presidente, geriu a construção do tanque elevado de água, obra que foi decidida devido às reclamações dos associados sobre os serviços de higiene.

Ele bateu em várias portas. Um deles foi o do Inca Kola, que apesar da difícil situação do país colaborou com uma quantia significativa. A situação permitiu-lhe conhecer uma história pouco conhecida. Certa vez, convocou os dirigentes da AELU, inclusive os fundadores, para dizer que havia recebido uma proposta da Coca-Cola para entrar no estádio. Os mais velhos informaram-lhe que durante a guerra a Inca Kola foi a única empresa que ajudou as empresas japonesas, recusando-se a ceder ao sentimento anti-japonês da época.

Assim, por lealdade ao Inca Kola, decidiu-se não aceitar a proposta do então concurso. Em sinal de gratidão, César Tsuneshige sempre deixa flores no túmulo de Isaac Lindley, filho dos fundadores da soda peruana.

A Associação Peruana Japonesa (APJ) também contribuiu com a construção da caixa d’água. Elena Yoshida presidiu a APJ e foi importante não só porque geriu e concretizou o apoio financeiro ao projeto. Foi também uma das pessoas que despertou o interesse de César Tsuneshige pela história da imigração japonesa no Peru.

Assim como conheceu a relação entre a colônia e o Inca Kola durante a guerra graças às histórias dos mais velhos da AELU, na APJ aos poucos foi conhecendo as origens da comunidade Nikkei através de diretores como Elena Yoshida ou Gerardo Maruy. Anos depois foi presidente da APJ.

HOMEM DE SORTE

Em 1990, César Tsuneshige visitou o Japão pela primeira vez. Mais de meio século depois, ele se reencontrou com o irmão que seu pai havia enviado para estudar em Yamaguchi. Teve uma infância difícil, indo de casa em casa, criado pelas tias. No entanto, ele atingiu a velhice com uma família estabelecida. Ele teve uma vida confortável e confortável.

Os pais de Don César não puderam retornar ao seu país após migrarem para o Peru. Nunca houve um reencontro com as crianças que foram enviadas para o Japão. Por isso, fez questão de deixar claro para o irmão que seus pais sempre pensaram nele, que sua mãe chorou pelo filho que estava longe, que a guerra mudou tudo.

Assim como o irmão no Japão, ele também já tinha uma vida montada, com a esposa Lucha e os filhos César e Patrícia.

Com sua esposa Lucha, seus dois filhos e seu neto. (Foto: © Arquivo pessoal)

Com a esposa conseguiu superar momentos difíceis, como quando foi feito refém, com centenas de pessoas, por um grupo terrorista que tomou a residência do embaixador japonês em 1996. Ficou cinco dias preso. Os alicerces proporcionados pela formação dos pais e pelo movimento escoteiro que o acolheu quando criança deram-lhe “força moral” para resistir.

De Luisa, com quem foi casado de 1968 a 2011, quando ela faleceu, destaca “a sua determinação, o seu carácter, a sua força”.

“Tive a sorte de ter uma boa família”, diz ele. Com o pai aprendeu “o espírito de servir” e destaca a gentileza da mãe.

Uma lição que seu pai lhe ensinou e da qual sempre se lembra é que a pontualidade não é negociável. “Você tem que ser pontual, porque você se respeita e respeita o horário dos outros”, disse ele. “Mas pai, o outro está atrasado”, respondeu César. "Não, você tem que chegar."

Seu principal capital são os laços afetivos. O que mais o orgulha é “ter tido uma boa família, bons amigos. Ter contribuído com alguma coisa, mesmo que com um grão de areia, para a comunidade (Nikkei). “Ter tido bons professores no escotismo, que saíram das fundações em momentos extremamente difíceis.”

O dia mais feliz de sua vida foi o dia de seu casamento.


UM GRANITO QUE DEIXA MARCA

“Não é uma questão de dinheiro, é uma questão de deixar algo para trás. A melhor coisa que se pode deixar para trás são os livros. Deixe algo escrito que dure. Sem querer, transcende-se o tempo”, afirma César Tsuneshige (Foto ©APJ / Raquel Baldarrago)

O Dr. Tsuneshige está lendo atualmente uma obra sobre a vida de Fidel Castro que lhe foi entregue pelo embaixador cubano, que conheceu durante a celebração dos 115 anos da imigração de Kumamoto ao Peru.

Nunca lhe falta a companhia de um livro. Um elemento essencial em sua vida. “Não é uma questão de dinheiro, é uma questão de deixar algo para trás. A melhor coisa que se pode deixar para trás são os livros. Deixe algo escrito que dure. Sem querer, transcende-se o tempo. Sem ser mais que um grão neste mundo, você deixa algum tipo de marca”, afirma.

A vida é como uma ampla rede de conexões que se tece ao longo de toda uma existência. No seu caso, você viu como essa cadeia de elos o marcou. Uma pessoa que ele ajudou no passado reaparece em sua vida muito mais tarde e lhe dá uma mão. O que vai, volta. Por isso, ele sempre enfatiza a importância da gratidão e da reciprocidade.

Que o seu trabalho seja incluído em publicações no exterior, que seja considerado uma referência na história da comunidade Nikkei ou que seja entrevistado em reconhecimento à sua carreira “são satisfações”, diz ele, “que não se compram com dinheiro”.

Termine a sessão de fotos. Agora você sabe como um artista se sente.

* Este artigo foi publicado graças ao acordo entre a Associação Japonesa Peruana (APJ) e o Projeto Descubra Nikkei. Artigo publicado originalmente na revista Kaikan nº 117 e adaptado para o Descubra Nikkei.

© 2018 Texto y fotos: Asociación Peruano Japonesa  

Callao famílias gerações Japão La Punta médicos Nisei Peru Província de Yamaguchi veterinários
About the Authors

Enrique Higa é peruano sansei (da terceira geração, ou neto de japoneses), jornalista e correspondente em Lima da International Press, semanário publicado em espanhol no Japão.

Atualizado em agosto de 2009


A Associação Peruano Japonesa (APJ) é uma organização sem fins lucrativos que reúne e representa os cidadãos japoneses residentes no Peru e seus descendentes, como também as suas instituições.

Atualizado em maio de 2009

Explore more stories! Learn more about Nikkei around the world by searching our vast archive. Explore the Journal
Estamos procurando histórias como a sua! Envie o seu artigo, ensaio, narrativa, ou poema para que sejam adicionados ao nosso arquivo contendo histórias nikkeis de todo o mundo. Mais informações
Novo Design do Site Venha dar uma olhada nas novas e empolgantes mudanças no Descubra Nikkei. Veja o que há de novo e o que estará disponível em breve! Mais informações