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Conheça o trabalho de duas tatuadoras nikkeis de São Paulo

‘Eu tenho o privilégio de conhecer a cada dia uma pessoa diferente, uma história diferente’.  (Foto: Luciana Alves Oi)

A partir de aproximadamente 10 anos atrás, a tatuagem vem ganhando outro status no Brasil. Antes, a ideia era de que apenas marginais tinham tatuagem. Atualmente, pessoas de diversas profissões e origens levam no corpo o que cada vez mais se aceita como “obra de arte”.

“Não vou negar que algumas pessoas ainda olham de jeito estranho. A sociedade está evoluindo e entendendo que é uma questão artística. Conversando com clientes, fico sabendo que algumas profissões ainda não encaram a tatuagem de forma positiva. Por exemplo, médicos e enfermeiros, muitas vezes por causa dos pacientes. O olhar de tabu, de preconceito, está mais restrito nas pessoas mais idosas. Se minha avó estivesse viva, ela ficaria chocada e acharia que não era uma coisa muito legal para fazer. Meus pais dizem que eles mesmos não fariam, mas acham bacana”, conta Sheila Oi, 37 anos, sansei por parte de pai e ascendência espanhola e italiana por parte de mãe.

Sheila trabalha como tatuadora há sete anos em São Paulo. Seu sistema de trabalho é baseado em tatuagens exclusivas, ou seja, envolve desde a concepção da arte até a execução da tatuagem em si. Assim, ela não tatua criações de outros artistas, nem repete uma arte em mais de um cliente. “Eu tenho o privilégio de conhecer a cada dia uma pessoa diferente, uma história diferente, porque cada um escolhe a tatuagem por um motivo. Homenagear alguém especial, marcar um momento da vida. Isso é muito importante para eu elaborar o projeto”, afirma Sheila.

Diversidade

O aumento da popularidade da tatuagem é facilmente constatado. Basta andar um pouco pelas ruas para ver uma grande variedade de motivos, o que revela os múltiplos interesses de quem quer ser tatuado.

“Meu público é bem diversificado. Já atendi atletas, professores, baristas, designers, chefs de cozinha, programadores, advogados e até médicos. A maioria costuma ser descendentes [de japoneses] e amantes da cultura asiática. Atendo muito o público LGBT também”, conta Ayuh Ieiri, sansei.

Ayuh também trabalha como professora de computação, artes e idiomas. “Sempre amei a arte, porém, só pensei em ser tatuadora nos últimos anos, e a oportunidade apareceu. Comecei a estudar a arte da tatuagem no final de 2017, mas minha estreia foi em abril de 2018.”

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Em sua conta do Instagram, Ayuh apresentava um sólido trabalho em ilustrações, que, gradativamente, passaram a dividir espaço com as tatuagens. “Ao mesmo tempo em que ilustrar é bastante parecido com tatuar, é também diferente. A principal diferença é que em uma ilustração, dependendo da técnica utilizada, é possível desfazer um erro ou mesmo modificar a ideia inicial da arte. Já na tatuagem, por ser um papel ‘vivo’ (ou seja, a pele), deve-se evitar ao máximo cometer qualquer erro. Além do mais, a máquina [de tatuar] possui o peso e vibrações características. Dessa forma, o foco, concentração e principalmente o treino são muito importantes para que a técnica seja muito bem executada. Cursos e workshops são sempre importantes para o aprendizado. Neste ano, realizei um workshop sobre cuidados na pele tatuada, ministrado por uma dermatologista”. Em São Paulo, são necessários um alvará de funcionamento para estúdios de tatuagem e um certificado da Agência de Vigilância Sanitária.

“No estado, só maiores de 18 anos podem ser tatuados”, explica Sheila. “A partir dos 18, o meu cliente mais velho tinha 75 anos quando eu fiz sua tatuagem. Hoje, depois de quase sete anos de trabalho, tenho um estilo consolidado, e as pessoas procuram pelo meu nome, a maioria dos clientes está na faixa dos 25 a 35 anos, com grande porcentagem do público masculino. São pessoas que gostam de desde coisas geek até escrita oriental, os kanji, dragões, lótus e budas. Há alguns anos, tatuar uma coisa geek não era tão bacana. Um Pokémon, por exemplo. Hoje, não tem problema, pois a tatuagem conta um pouco sobre quem você é.”

No Japão, existe uma forte associação da tatuagem com a máfia. No Brasil, haveria algum reflexo de estranhamento por parte dos nikkeis? Sheila faz uma observação: “Já reparei na Liberdade que há descendentes de japoneses e chineses que olham com reprovação para brasileiros sem ascendência oriental com tatuagem de motivo oriental.”

“Alguns desenhos característicos da cultura japonesa, como o dragão e a carpa, são imagens que se popularizaram no Ocidente de uma forma absurda. Penso que temos que respeitar as diferenças de cultura. Se a pessoa quer fazer um dragão, creio que não custa ela pesquisar o significado. Não que seja uma obrigação. Eu gosto de pesquisar porque isso enriquece o trabalho. Tem uma questão gráfica que temos que respeitar. Independente da cultura e com as mudanças que vêm com o tempo, é importante pesquisar para não perder a essência. Preservar a tradição, mesmo que seja feita uma releitura, é um traço da cultura japonesa também”, continua Sheila.

Só kawaii?

Para duas tatuadoras nikkeis, seria de se esperar que trabalhassem apenas com o tema oriental ou com desenhos kawaii? Não é assim.

“Não é o meu foco de trabalho. Eu tenho feito muitos trabalhos envolvendo o mundo geek e otaku porque as pessoas se identificam com meu estilo. Porém, nunca houve essa associação só por ser descendente ou por ter conhecimento da cultura. Algumas pessoas, quando sabem que eu tenho uma graduação em Artes Plásticas e que pesquisei sobre mangá (estilo que desenho há muitos anos) para o TCC e mestrado, se sentem mais confortáveis para me procurar por terem certeza do resultado”, explica Sheila.

Desenvolvimento de conceitos. (Foto: Ayuh Ieiri)

“Comigo isso não acontece muito, talvez por eu ter um estilo um pouco mais alternativo e absorver culturas diferentes das minhas origens”, afirma Ayuh. “Sou uma cidadã do mundo e gosto de transparecer isso na minha arte também.”

Ayuh já viajou por muitos países da Europa e América do Sul. “Recordo a vez em que estive na França em 2018, quando compartilhei o quarto com uma garota da Mongólia e outra de Taiwan, que ficaram surpresas quando eu, com o rosto praticamente com os mesmos traços raciais que os delas, disse ser brasileira. Elas ficaram maravilhadas quando mostrei fotos com amigos descendentes, que assim como eu, eram brasileiros. Poucos sabem que o Brasil é o segundo país com a maior população com sangue japonês fora do Japão. Já aconteceu de uma atendente de loja, também em um país europeu, não aguentar a curiosidade e perguntar de onde eu era, pois mesmo tendo os traços asiáticos, eu não parecia ser de nenhum país da Ásia por conta da minha roupa e até jeito de andar. Ela pensou que eu fosse uma asiática americana. Eu me divirto com essas situações.”

Sheila tem planos de atuar como guest em estúdios de tatuagem no exterior. É uma espécie de estágio, em que um tatuador estrangeiro trabalha temporariamente como convidado em um estúdio. “É superimportante viajar, inclusive dentro do Brasil, e ver outro profissional tatuando sempre enriquece o trabalho.”

“O foco é ir para os EUA, que é o berço da tatuagem. Gostaria de ir para a Europa também. É um estilo diferente, com uma pigmentação diferente. Adoraria ir ao Japão aprender o tebori. Na Nova Zelândia também, onde tem o estilo Maori, que é um estilo muito rudimentar de tatuagem. Existem muitos estilos bacanas que seria muito legal ver de perto, vivenciar a experiência, não só por um vídeo na internet.

Sheila trabalha com artes exclusivas, desde o conceito até a execução. (Foto: Henrique Minatogawa)  


Identidade nikkei

“Eu tive muito contato com a cultura japonesa porque convivi muito com minha obachan e ojichan. Minha obachan nunca deixou de falar nihongo em casa, por mais que a gente não entendesse. O interesse pela cultura foi meu, já que eles nunca me falaram para ir atrás. Eu me identifico muito com a cultura japonesa e continuo estudando. Acrescenta muito no trabalho e na vida também. Levo até hoje os ensinamentos da minha avó. Sempre ser muito honesta e cuidar de todos os detalhes, mesmo nas coisas mais simples. Minha obachan era costureira, então ela fazia tudo com muito capricho, por mais que demorasse. Ela dizia que tudo tinha que ser muito bem pensado com carinho e responsabilidade, pois estava dedicando seu trabalho e seu tempo para alguém, então não era para fazer de qualquer jeito, para fazer bem feito”, conta Sheila.

“Acredito que a identidade nikkei é um conjunto de muitos fatores que não se limitam apenas à convivência com demais membros, como também a preservação de valores dos nossos antepassados e da cultura em si. A disciplina, respeito, esforço e gratidão. Isso tanto na vida pessoal quanto profissional. O lado positivo é que algumas pessoas que não são da minha etnia, se aproximam porque admiram, respeitam e se identificam com a cultura, e assim ocorre uma troca de informações e vivências. O lado negativo é que, infelizmente, há pessoas que nos estereotipam por causa de nossa aparência, trazendo consigo todos os rótulos que muitas vezes não são nem um pouco verdadeiros. Rótulos esses que são de conotações racistas, xenofóbicas, sexistas etc. Isso é um assunto bastante delicado, bastante debatido na comunidade asiática atualmente e que merece atenção. Não falo somente da etnia asiática, como também todas aquelas que merecem ser ouvidas e respeitadas”, afirma Ayuh.

Para saber mais:

 

© 2019 Henrique Minatogawa

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About the Author

Henrique Minatogawa é jornalista e fotógrafo, brasileiro, nipo-descendente de terceira geração. Sua família veio das províncias de Okinawa, Nagasaki e Nara. Em 2007, foi bolsista Kenpi Kenshu pela província de Nara. No Brasil, trabalha na cobertura de diversos eventos relacionados à cultura oriental. (Foto: Henrique Minatogawa)

Atualizado em julho de 2020

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