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O desafio do shogi no Brasil

Peão, torre, cavalo, bispo, rei: no Brasil, esses nomes logo remetem ao jogo de xadrez. Não que o xadrez seja extremamente popular no país, apenas que muitas pessoas têm alguma noção. A expressão “xeque-mate” é usada em diversas situações do cotidiano. Eu mesmo aprendi a jogar xadrez na escola; na faculdade, havia um clube de xadrez, mas eu não fazia parte.

Na minha família, ninguém jogava shogi. Não que eu saiba, pelo menos. Não lembro de ter visto tabuleiro e peças na casa de nenhum parente. De vez em quando, via um tabuleiro em alguma loja do bairro oriental em São Paulo. Porém, toda curiosidade a respeito do shogi recebia a mesma resposta: “é o xadrez japonês, mas mais difícil”.

Por que será que o fator “dificuldade” era geralmente atribuído ao shogi? Será por ter um kanji estampado ao invés de uma peça esculpida na forma de um cavalo ou torre? “Aprender a jogar shogi tem três principais barreiras”, conta Rodrigo Yuji, 25 anos, farmacêutico, descendente de terceira geração e praticante de shogi desde 2012. “A primeira é o interesse. Existem diferentes perfis de pessoas, bem como seus gostos. A segunda é a perseverança. Todos temos dificuldade em algum ponto do aprendizado, porém, poucos são os que não desistem. A terceira é a disciplina. Aprender um pouco todos os dias é a parte mais difícil. Vencendo estas três barreiras, acredito que qualquer pessoa consiga aprender shogi ou qualquer outra coisa, sabendo ler japonês ou não.”

Participante segue instruções distribuídas no evento. (Foto por Henrique Minatogawa)

Para saber um pouco mais sobre o shogi e verificar a dificuldade para aprender suas regras, fui a um workshop organizado pela Associação Brasileira de Shogi. Para minha surpresa, ao invés de começar logo pelas regras do jogo, o evento abordou a história do Japão.

“Ao explicar as características do shogi, é imprescindível saber sobre história do Japão”, afirma Tatsuya Ishikawa, 28 anos, jornalista japonês, há cinco anos no Brasil, e um dos instrutores do workshop.

Japonês no Brasil há 5 anos, Tatsuya Ishikawa foi um dos instrutores. (Foto por Henrique Minatogawa)

“O shogi chegou ao Japão durante o período Heian (séculos 8 a 12), época em que o budismo se tornou muito popular. O budismo, por princípio, proíbe matar. Atualmente, há pena de morte no Japão, mas entre os anos 850 e 1156 (na contagem ocidental), ainda durante o período Heian, a pena de morte foi abolida. Considera-se que o budismo teve influência nessa mudança”, explica Ishikawa. Esse fato pode explicar uma das regras características do shogi, que é a reutilização de uma peça capturada.

“Esse ambiente religioso influenciou o jogo do shogi. Isso teria originado a ideia de ‘não matar as peças’, o que levaria à regra de “use as peças da melhor forma possível para poder usá-las novamente”, completa Ishikawa.

“Para alguns, desperta o interesse de imaginar aquela situação de antigamente no tabuleiro.

Para outros, ilustra o histórico de tudo que o povo japonês chegou e de como desenvolveram este jogo. Minha visão pessoal é que a história serve para mostrar a nossa evolução e evitarmos nossos erros passados”, opina Rodrigo.

Há algumas passagens relacionadas ao shogi que, embora não possam ser comprovadas, tornaram-se folclóricas entre os aficionados. Ishikawa contou uma delas:

“Algum tempo depois da Segunda Guerra Mundial, o comando de ocupação tomou algumas medidas para eliminar ‘ideias militarísticas’ do Japão. Como parte dessas ações, o comando proibiu ‘jogos selvagens’, incluindo o shogi. As razões eram ‘diferente do xadrez, não há a peça da rainha, então há discriminação de gênero’; ‘fazer peças capturadas lutarem contra seus antigos aliados é uma violação à Convenção de Genebra que proíbe o abuso de prisioneiros de guerra’. Ao ouvir isso, o mestre Kozo Masuda explicou ao comando que ‘é uma antiga virtude de nosso país proteger as mulheres do perigo’ e que ‘a reutilização de peças capturadas não é abuso, mas perdão aos inimigos, baseado na ideia de tratamento igualitário’. O shogi, então, foi excluído da lista de itens proibidos.”

Primeiros passos

O roteirista William Jun Sugiyama, 29 anos, sansei, foi ao evento com o objetivo de ter mais contato com o shogi e aprender as regras básicas. “Conhecia por mangás e outras coisas referentes à cultura japonesa, mas nunca havia jogado”, conta.

Jun joga karuta, um tipo de jogo de cartas japonês, e xadrez, mas não conhece ninguém que pratique shogi. Sua impressão ao fim do workshop: “Acho que foi uma explicação muito boa para os que não conhecem muito sobre o assunto. Algumas coisas eu já conhecia por ter ouvido explicações semelhantes sobre o go ou em mangás sobre shogi. Muitas das regras são semelhantes ao xadrez. As diferentes são complicadas, mas acredito que seja uma questão de adaptação”.

Ishikawa ensina às crianças as regras básicas do shogi. (Foto por Henrique Minatogawa)

No workshop, os instrutores também destacaram a importância da cortesia no jogo, com cumprimentos antes e depois da partida. “A etiqueta de competição é muito importante, então é bom passar desde cedo, especialmente aos mais novos que acompanhavam a aula. Estabelecer a postura é o primeiro passo na hora de ensinar algo novo, pois será difícil ensinar para os que já se acostumaram ‘errado’”, observa Jun.

É interessante observar a diferença entre como Ishikawa e Rodrigo conheceram o shogi, já que um é japonês e o outro, brasileiro.

“Na época do ensino primário, aos 10 anos, soube da existência do shogi na escola. Ganhei dos meus pais um tabuleiro, peças e um livro de instruções para iniciantes e comecei a aprender. Porém, eu não conhecia ninguém que jogasse shogi, então acabei parando. Quando entrei na faculdade, ao ler um mangá chamado Hachiwan Diver [N.E. 81 diver de Yokusaru Shibata], lembrei o quanto o shogi era interessante e, então, voltei a jogar. Depois, estudei por um livro de estratégias para jogadores intermediários e disputei partidas pela internet para aprofundar meus conhecimentos sobre shogi. Depois de me formar na faculdade, vim ao Brasil. Agora, estou aprendendo com os veteranos da Associação de Shogi”, conta Ishikawa.

Já Rodrigo conheceu o shogi por meio da prática do xadrez. “Comecei com o xadrez em 2011. Quando fui atrás de material, encontrei um senhor que trabalhava apenas com jogos de tabuleiros e que me apresentou o shogi. Achei interessante e procurei por material na internet. Na época, havia muito pouco material disponível, mas tinha um canal do YouTube no qual aprendi muito [Hidetchi]”, comenta.

O benefício mais comumente atribuído à prática de jogos de tabuleiro tradicionais é o estímulo ao raciocínio lógico, porém, há outros.. “Eu gostaria de destacar como principal benefício o fato de que, para vencer, é preciso aprender com o passado”, afirma Ishikawa. “O formato atual do shogi foi estabelecido no século 16. Se um mestre do século 16 e um mestre contemporâneo jogassem uma partida, certamente o contemporâneo venceria. Isso porque as táticas do shogi sempre estão evoluindo. Não importa o quão talentosa uma pessoa seja, há um limite para a invenção de táticas. É preciso aprender com o legado dos antecessores para se tornar um jogador forte.”

“O shogi tem benefícios para todas as idades”, acrescenta Rodrigo. “Acredito que os pontos principais para as crianças seriam: desenvolvimento do raciocínio lógico, memória, elaboração de tática, gerenciamento de recursos e aprendizado com a derrota. Para os idosos: administração de recursos e desenvolvimento de novas conexões entre neurônios, fortalecendo a ramificação dos mesmos e evitando doenças degenerativas.”

“O shogi tem benefícios para todas as idades”, afirma Rodrigo Yuji. (Foto por Henrique Minatogawa)

Divulgação do shogi

Ishikawa estudou sociologia na faculdade. Em especial, estudou sobre as baixas taxas de natalidade e envelhecimento da população no Japão. “A razão da minha vinda ao Brasil é porque penso que pessoas com senso internacional são importantes para o futuro do Japão, onde a baixa taxa de natalidade e o envelhecimento da população estão avançando. [Além disso] Praticamente todos os competidores de shogi são japoneses, então conforme a baixa taxa de natalidade e o envelhecimento da população avançam, a cultura do shogi também vai diminuir”, conta.

“Ao vir ao Brasil, soube que a Associação de Shogi estava divulgando a cultura do shogi aqui. Então me lembrei de Hachiwan Diver. Um dos temas desse mangá é a divulgação do shogi em escala global. Eu realmente gosto desse mangá e do trabalho de seu autor, Yokusaru Shibata, então gostaria de ajudar a divulgar o shogi pelo mundo”, afirma Ishikawa.

“A Associação Brasileira de Shogi, segundo Hiroshi Utsumi (ex-presidente), foi fundada por japoneses em 1948. Eu frequento como membro desde 2012. Nos últimos três anos, ajudo na divulgação e em eventos”, conta Rodrigo.

Atualmente, segundo Rodrigo, a associação conta com aproximadamente 40 membros ativos. “Esse número vem regredindo e estamos lutando para reverter essa situação”, conta. Já o número de praticantes no Brasil chegaria a cerca de mil. Como referência, a página da associação no Facebook tem 781 seguidores.

Segundo os organizadores, há cerca de mil praticantes de shogi no Brasil. (Foto por Henrique Minatogawa)

Quais seriam as dificuldades para popularizar o shogi?

“O shogi é um tipo de xadrez regional, cujos interessados têm afinidade com a cultura japonesa. Isso vale para o xadrez chinês, coreano, etc. Diferente do go, que é um jogo comum em diversos países do oriente. Além disso, o shogi é associado erroneamente a pessoas de faixa etária mais elevada, pois todas as pessoas podem jogar. Outro inimigo do aprendizado dos jogos de tabuleiro tradicionais são os jogos contemporâneos, sejam eletrônicos ou de tabuleiro, cuja popularidade é muito mais elevada e mais atraente para a maioria das pessoas”, avalia Rodrigo.

“Com interesse, perseverança, disciplina e aliado a uma boa orientação, acredito que dois meses sejam suficientes [para uma pessoa conseguir jogar fluentemente]. Mas a média das pessoas que eu observo saindo daquela curva de aprendizado inicial seriam de quatro a seis meses”, continua.

Ishikawa aponta o mangá e o animê como agentes de divulgação do shogi no Brasil. “Se houvesse mais divulgação sobre a existência da Associação Brasileira de Shogi, acredito que haveria mais competidores. Entretanto, a associação ainda não está preparada para receber muitos jogadores brasileiros. Especialmente porque não há número suficiente de pessoas que podem ensinar shogi em português. Além de iniciar a procura por professores, nós vamos desenvolver e concentrar conteúdo em português na internet para que os novatos possam aprender com mais facilidade”, afirma.

Na visita ao workshop de shogi, tive um contato com a sua história e suas regras básicas. É possível realmente perceber a presença da cultura japonesa durante todo o procedimento de uma partida. Quanto ao jogo em si, ainda estou no prazo de seis meses apontado por Rodrigo.

 

© 2018 Henrique Minatogawa

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About the Author

Henrique Minatogawa é jornalista e fotógrafo, brasileiro, nipo-descendente de terceira geração. Sua família veio das províncias de Okinawa, Nagasaki e Nara. Em 2007, foi bolsista Kenpi Kenshu pela província de Nara. No Brasil, trabalha na cobertura de diversos eventos relacionados à cultura oriental. (Foto: Henrique Minatogawa)

Atualizado em julho de 2020

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