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https://www.discovernikkei.org/pt/journal/2017/9/15/restaurante-misuzu/

Aconteceu no Restaurante Misuzu. Honto Ni*!

A Rua Américo de Campos é uma via curta e estreita que tem seu início no Largo da Pólvora, cruza a rua Galvão Bueno e, na esquina com a rua da Glória, desemboca justo na Praça Almeida Junior. Eu sou capaz de cumprir o seu trajeto de olhos fechados. Ou pelo menos era. No número... 154? Ficava o Misuzu, um restaurante japonês sui generis.

Este restaurante diferenciava-se dos demais do bairro oriental pelo fato de abrir sua única, pequena e estreita porta com cortinas azuis decoradas com ideogramas brancos, de onde pendia uma empoeirada lanterna típica japonesa, somente após as 22 horas. Por que tão tarde? Simples: porque a sua clientela era composta por animais de hábitos noturnos que jamais saiam das suas tocas antes do avançado das horas. E era ali que se reunia a nata da boemia daqueles tempos, décadas de 1980 e 1990: estudantes, malandros, garotas de programa...

Bairro da Liberdade à noite

Kembo-san, o proprietário, era um sujeito boa praça, e os pratos da casa, em especial o yakimeshi (risoto) de frutos do mar, eram simplesmente magistrais. As terrinas fumegantes de sopa de soja (missoshiru) com cubos de tofu boiando era um santo remédio para as ressacas mal curadas.

Disponho-me, portanto, a narrar aqui um caso interessante, entre os tantos ocorridos naquele saudoso ponto de encontro notívago. Caso este que, garanto, não ouvi de terceiros, haja vista que teve o protagonismo justo deste que vos escreve.

Como em todo restaurante japonês que se preze, exigia-se também no Misuzu que, ao entrar para ocupar o seu lugar no tatame, o cliente devia descalçar os sapatos. Alguns clientes se constrangiam por causa de eventuais odores desagradáveis; outros por eventuais furos nas meias. Fazia parte.

Ocorre que, encerrando uma noitada com alguns amigos, todos alegres e eufóricos sob o efeito de incontáveis cervejas, para variar, nos dirigimos ao Misuzu - a obrigatória pit stop para recuperar as baterias arriadas. Depois de saborearmos um delicioso peixe grelhado (Yakizakana), e enxugarmos mais uma rodada de biiru (cervejas), pedimos a conta, pagamos, e fomos cada um para o aconchego do seu respectivo lar.

Na descida da Galvão Bueno, achei estranho que os meus sapatos estivessem excessivamente frouxos, laceados.

“Ou meus pés diminuíram, ou estes sapatos cresceram”, deixei escapar.

A gozação dos que andavam comigo foi geral. Eu havia por distração calçado o sapato de outro cliente que talvez estivesse em “aperto” naquele momento.

Retornei mais que depressa ao Misuzu e, por sorte, os meus sapatos ainda estavam lá, na prateleira junto à porta de entrada. Corrigi discretamente a situação, mas não pude evitar que a história se espalhasse rapidamente pelo bairro oriental.

O Misuzu infelizmente não existe mais. Sua memória, porém, fica registrada nesta crônica sobre o querido Bairro da Liberdade.

Nota:
*Honto Ni: Em japonês — é verdade

 

© 2017 Chico Pascoal

Brasil comida restaurante Misuzu São Paulo (São Paulo)
Sobre esta série

Como a comida que você come expressa a sua identidade? Como a culinária ajuda a criar laços na sua comunidade e a unir pessoas? Que tipos de receitas foram passadas de geração à geração na sua família? Itadakimasu 2! Um Novo Gostinho da Cultura Nikkei revisitou o papel da culinária na cultura nikkei.

Nesta série, pedimos à nossa comunidade Nima-kai para votar nas suas histórias favoritas e ao nosso Comitê Editorial para escolher as suas favoritas. No total, cinco histórias favoritas foram selecionadas.

Aqui estão as histórias favoritas selecionadas.

  Editorial Committee’s Selections:

  Escolha do Nima-kai:

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About the Author

Chico Pascoal é cearense de Crateús. Contista finalista do I Concurso de Contos do Bunkyo, do I Concurso de Contos Rota das Letras de Macau, China. Em 2015 foi um dos classificados no Concurso Monteiro Lobato de Contos do SESC-DF. Participou da coletânea “Duas Cenas, um Muro? e outras histórias”.

Atualizado em setembro de 2017

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