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O encanto das “feiras livres”

Um dos hábitos prazerosos que cultivo desde jovem é frequentar as feiras livres” ou “fazer a feira” como se diz em São Paulo, cidade onde moro há muitos anos.

A “feira livre” é tradição da cultura local, como é o Carnaval, o jogo de futebol aos domingos, a pizza aos sábados, o chope às sextas feiras e o inefável café com leite e pão com manteiga na padaria da esquina. Dizem os entendidos que aquele que não se encanta com o charme de uma feira livre não sabe o que é morar nesta grande metrópole.

Barraca de pastel

Exageros à parte, existem em S. Paulo quase 900 feiras, espalhadas por todos os bairros. São mais de 12.000 feirantes cadastrados, responsáveis por mais de 16.000 barracas distribuídas pelos 6 dias da semana, por algum canto da cidade, sempre de terça a domingo. É uma prática comercial que surgiu na antiguidade e introduzida no Brasil desde o tempo do Brasil-Colônia. Na Capital de São Paulo, nos seus 100 anos de regulamentação, consolidou-se de tal forma que acabou se tornando um traço marcante da cultura popular paulistana, mantendo sempre o mesmo formato, embora algumas tenham se ressentido da concorrência dos supermercados e dos varejões. Sobreviveram à modernização dos tempos e vêm mantendo a sua atratividade, com um público estimado em cerca de 3 milhões de pessoas, que frequentam semanalmente esses mercados de céu aberto e se abastecem dos produtos lá comercializados.

As feiras-livres são responsáveis por expressiva parcela de venda de produtos “in natura”, como frutas, legumes, cereais, verduras, pescados, representando uma fonte geradora de 70.000 empregos diretos, além de significar uma verdadeiro espaço de interação e integração social. Trata-se de uma atividade tão democrática, onde quase tudo é permitido, local onde se misturam pessoas de todas as classes, sem qualquer distinção; senhoras refinadas e executivos bem vestidos se permitem provar uma fruta, ao mesmo tempo em que pessoas mais simples, de bermuda e chinelo, aproveitam as promoções e pechinchas no final de feira. Consumidores de diferentes classes sociais estão representados na feira livre e talvez seja esse o verdadeiro encanto das feiras.

De mais a mais, outra característica que ressalta aos olhos, é a presença maciça de nikkeis entre os incansáveis e dedicados comerciantes que se dedicam a esse trabalho, carinhosamente denominados de “feirantes”. Segundo um levantamento realizado, em algumas feiras a presença de nikkeis entre os feirantes chega a superar 50%, dando um toque oriental ao movimentado negócio. Esse percentual chegou a ser maior ainda duas ou três décadas atrás, época na qual, iniciou-se a migração de descendentes de japoneses aqui radicados para o Japão, em busca de uma alternativa de emprego e de vida, em decorrência da grave crise econômica que se abatera sobre o Brasil, ocasionando o fenômeno denominado “dekassegui”. Desde então, o número de feirantes nikkeis reduziu sensivelmente, repercutindo na estrutura e na aparência das feiras livres em São Paulo.

Mas, ainda assim, tenho amigos feirantes nikkeis que continuam à frente de suas barracas há mais de 30 anos, com a diferença que seus rostos já estampam os rigores da idade e do trabalho pesado, ao lado de filhos e genros que agora os sucedem, na dura faina de dar prosseguimento ao negócio.

Mário Massayuki Nagae, Feirante de Frutas

A feira é um lugar cheio de sons, cores, cheiros, movimentação de pessoas. O colorido das frutas, verduras e legumes fresquinhos é de encher os olhos e o cheiro característico de cada um aguça o paladar. Os feirantes gritam apregoando a qualidade dos seus produtos e garantindo que o seu preço é o melhor da feira. As pessoas circulam, examinam , pechincham ou, simplesmente, vão a passeio, “só para olhar”. Outras, já têm suas barracas preferidas, conhecem os feirantes de longa data que, às vezes, parecem mais amigos do que fregueses.

Nestes locais, a palavra ainda vale mais do que o código de barra, pois no grito do feirante ou na pechincha dos fregueses as feiras-livres vão sobrevivendo ao avanço dos supermercados. Conforme relato de alguns feirantes, metade dos consumidores vem atrás de preço e produto fresco e a outra metade vem à feira porque gosta de conversar. Em meio a agitação, ouvem-se gritos que ressoam pelo ambiente: “Freguesa, venha provar o melhor abacaxi da feira, doce como beijo de uma moça!”;D. Maria, aqui a verdura é mais barata; temos alface, agrião, repolho, beterraba e cenoura para fazer aquela salada!”. Em outra barraca um rapaz complementa: “moça bonita aqui não paga, mas também não leva!”

Talvez seja essa a grande vantagem competitiva das feiras-livres em relação aos supermercados, uma vez que é impensável um funcionário de supermercado abordar e vender frutas e legumes aos gritos, além de que os feirantes podem estreitar cada vez mais seu relacionamento com a clientela a fim de tentar torná-la fiel. É a possibilidade do maravilhoso contato humano entre fregueses e feirantes, coisa improvável de acontecer no ambiente frio e impessoal dos hipermercados e similares.

Em muitas barracas nota-se que as pessoas que estão trabalhando são todas de uma mesma família. E esse detalhe se confirma na maioria das feiras. Basta percorrer por qualquer uma das feiras da cidade para encontrarmos casais, pais e filhos trabalhando na mesma barraca. Segundo estatística recente, 60% são homens, 40% mulheres, com idades que variam de 35 a 65 anos. E, se de um lado tem poucos jovens até 25 anos, há uma grande participação de idosos feirantes, entre 66 e 90 anos. No meio de tudo isso existem os vendedores ambulantes, com tabuleiros montados em cima de caixotes ou simplesmente com um papelão estendido no chão, que aproveitam a feira para tentar vender produtos menos nobres. Tem os meninos que se oferecem para ajudar as pessoas a carregar as sacolas. Em suma, uma “confusão” perfeitamente organizada e democrática, onde tudo parece funcionar na hora e no lugar certo.

Para quem observa de fora a feira assemelha-se a um teatro cheio de personagens, cada qual com sua história de vida cheia de altos e baixos, de sacrifício e de esperança, mas todos ciosos da importância do seu papel dentro da estrutura de abastecimento da cidade, com produtos frescos e preços justos.

Como bem afirmou o amigo Washington, um nissei bem formado, que de tão simpático, parece ter amizade com quase todos os feirantes do seu bairro: “os feirantes são legais , têm uma relação de carinho com a gente. Eles nos dão muito mais atenção do que teríamos em um supermercado!” Afirmação que é confirmada pelo feirante Eduardo Makino, igualmente nissei, afirmando que a relação é recíproca: “o freguês é um amigo. Temos vários clientes como o Seu Washington, que compra na nossa barraca há mais de 20 anos. No fim, acabamos conhecendo a família toda e suas necessidades de compra e por isso já deixamos tudo separado!” Enfim, cria-se uma relação de confiança e amizade que faz a “feira livre” ter esse apelo e encanto, apesar da forte concorrência dos agressivos e poderosos supermercados.

Eduardo Makino, Feirante de Verduras

E, como derradeiro e decisivo argumento: quem há de resistir ao convite de saborear na feira aquele pastel de queijo, de carne ou de 20 outros sabores que são oferecidos nas barracas, acompanhado daquele saboroso caldo de cana com limão ou abacaxi, geladinho, tirado na hora?” Impossível perder um programa desse, não acha?

Pastel de feira

 

© 2017 Katsuo Higuchi

Brasil comunidades mercados de agricultores
About the Author

Natural de Tupã – SP, nissei, formado em Direito com Especialização em Relações Trabalhistas. Durante 50 anos atuou como Executivo e Empresário na área de Recursos Humanos. Consultor Empresarial, é  também Colunista do Jornal Nippo Brasil.

Atualizado em junho de 2017

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