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Fernando Hiramuro e Yasuaki Yamashita: Sobreviventes nipo-mexicanos dos bombardeios atômicos de Hiroshima e Nagasaki — Parte II

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Yasuaki Yamashita aos cinco anos.

Yasuaki Yamashita nasceu em 1939 na cidade de Nagasaki. Até o momento da explosão da segunda bomba atômica na sua cidade natal no dia 9 de agosto de 1945, Yasuaki havia passado toda a sua infância em tempos de guerra; antes do ataque japonês a Pearl Harbor em dezembro de 1941, o Japão já se encontrava envolvidocom a ocupação da Chinadesde 1931. O longo período de sacrifícios representados por esses conflitos é conhecido pela população como “o vale sombrio”, kurai tanima.

Apesar de Yasuaki ter crescido durante a fase mais difícil da guerra, ele se divertia na companhia dos seus amigos,brincando e caçando grilos e cigarras nas montanhas perto da sua casa. As crianças estavam acostumadas com o grito das sirenes anunciando a chegada dos bombardeiros americanos; a população tinha instruções para se esconder em abrigos antiaéreos no momento do alarme, como já havia acontecido em diversas ocasiões antes do lançamento da bomba atômica.

Yasuaki acompanhava a mãe nas visitas às associações de bairro, onde a população era organizada e recebia treinamento militar. Essasassociações, conhecidas como tonarigumi, desempenharam um papel fundamental no apoio à guerra. Ao se aproximar o fim da mesma, as mulheres começaram a ser treinadas no manejo de lanças de bambu –arma que elas usariam contra o exército americano case o Japão fosse ocupado.

Estudantes recebendo treinamento militar.

Apesar da propaganda dos comandos militares continuar a insistir que a derrota do Japão era impossível, eles ao mesmo tempo incentivavam na população o que é conhecido como o espírito gyokusai; ou seja, a ideia de que era preferível morrer honrosamente do que capitular ou se render ao inimigo. Mesmo após o lançamento da primeira bomba atômica em Hiroshima em 6 de agosto, o Conselho Supremo decidiu continuar a guerra até o fim, contrariando a vontade do próprio Imperador Hirohito.

A família Yasuaki era numerosa; além de seu pai e sua mãe, ainda havia seis irmãos. Os três irmãos mais velhos tinham sido recrutados no exército, enquanto que as três irmãs frequentavam a escola. O pai de Yasuaki trabalhava numa das maiores e mais importantes empresas japonesas: a Mitsubishi. Este grande conglomerado ozaibatsu produzia armas e aviões, e era responsável pelos estaleirosde Nagasaki, os quais se tornaram um dos alvos de bombardeio selecionados pelo exército americano.

Em 9 de agosto, quando a bomba atômica foi lançadaàs 11:02 da manhã, Yasuaki não tinha saído com os amigos para caçar insetos. Junto com sua mãe e uma de suas irmãs, eles ouviram a sirene e o rádio avisando que um avião inimigo estava se aproximando. Eles então entraram em casa e se dirigiram para o abrigo subterrâneo. Antes de poderem alcançá-lo, viram uma luz intensa que os cegou; em seguida, uma força enorme os arremessou no chão.

A mãe de Yasuaki conseguiu protegê-lo com o seu corpo e, engatinhando no escuro, entraram todos no abrigo enquanto por cima deles voavamuma infinidade de objetos. A casa havia desmoronado; sobraram apenas as colunas que sustentavam o telhado e algumas paredes. A irmã de Yasuaki disse à mãe que tinha caído óleo na sua cabeça, mas na verdade era sangue escorrendo porque ela havia sido cortada por cacos de vidro. Depois de alguns minutos, todos se dirigiram ao abrigodo bairro, localizado nas montanhas; de lá puderam ver os poucos prédios que continuavam em pé e as chamas que cobriam a cidade.

No abrigo da comunidade também chegaram o pai, as irmãs e os amigos de Yasuaki que estavam nas montanhas. Uma das crianças estava com as costas completamente queimadas e morreria no dia seguinte. Seguindo as instruções das autoridades, o pai de Yasuaki e centenas de outros voluntários se dirigiram para o epicentro da explosão para ajudar os sobreviventes, se deparando então com milhares de cadáveres. Após passar dias e noites trabalhando nestaárea, o Sr. Yamashita acabou sendo exposto à intensa radiação, o que fez com que ele ficasse doente repentinamente, morrendo poucos meses depois. Estima-se que mais de 70.000 pessoas morreram nomomento da explosão e nas semanas seguintes.

A cidade de Nagasaki dias depois da explosão da bomba atômica.  

Nas semanas após o lançamento da bomba, o sofrimento da população aumentou porque não havia comida, enquanto que o número de feridos e mortos aumentava a cada dia. Para conseguir algo para comer, a mãe de Yasuaki decidiu levar as crianças para a casa de parentes que moravam fora da cidade; para isso, tiveram que passar pelo epicentro onde a bomba havia explodido, se deparando assim com milhares de corpos carbonizados que ainda não tinham sido removidos.

Depois de alguns dias, Yasuaki, sua mãe e suas irmãs retornaram a Nagasaki sem ter conseguido obter comida suficiente. Com o que restava das paredes queimadas e dos materiais resgatados das ruínas puderam reconstruir e tapar os buracos maiores na casa para pelo menos não serem forçados a dormir do lado de fora.

Nos meses seguintes, a situação da população foi radicalmente transformada devido à destruição quase total das cidades, da economia do país e da ocupação das forças armadas americanas. Yasuaki entrou na escola primária, onde a maioria das crianças assistiam as aulas sem sapatos e com as roupas remendadas por causa da falta destes tipos de mercadorias as quais só podiam ser encontradas a preços exorbitantes no mercado negro. Os livros escolares distribuídos nas escolas eram aqueles que haviam sido usados​​durante a guerra, nos quais os alunos riscavam os parágrafos exaltando o imperador eos anos militaristas do Japão.

A ocorrência mais grave durante aqueles anos sem dúvida continuou a ser a escassez de alimentos e a subsequente fome. O exército americano se viu forçado a distribuir alimentos nas escolas; Yasuaki se lembra claramente do dia quando tomou leite em pó e comeu passas de ameixas e alguns biscoitos, o quais pareciam um verdadeiro manjar dos deuses que havia caído do céu.

O encontro entre os soldados e a população durante a ocupação americana se tornoualgo inesperado e surpreendente para ambas as partes. Os soldados americanos não eram “demônios” com chifres, como Yasuaki e seus amigos os imaginavam devido às informações divulgadas pelos militares durante a guerra. Nem tampouco o povo japonês era uma horda de bárbaros e fanáticos como afirmava o governo americano. Tanto a propaganda de guerra japonesa quanto a americana tinha chegado ao ponto de considerar que a guerra terminariaapenas com o extermínio do inimigo. No entanto, as tropas americanas se depararam com uma população disposta a colaborar; o povo japonês lidou com o exército americano de forma disciplinada, educada e ordenada – até mesmo amistosa – de forma que os soldados não dispararam nem mesmo um único tiro durante os sete anos da ocupação.

A batalha que os japoneses tiveram que enfrentar no período do pós-guerra estava focada na reconstrução do país em ruínas. A irmã de Yasuaki começou a trabalhar para ganhar algum dinheiro e o próprio Yasuaki virou entregador de jornais para ajudar no sustento da família após a morte do pai.

Quando Yasuaki estava para se formar no segundo grau, ele começou a sofrer de uma estranha doença que se manifestava através de repentinas hemorragias que o faziam desmaiar devido à acelerada anemia que se seguia. Exames médicos determinaram que não havia uma explicação aparente para estes sintomas e até hoje não foi descoberta uma explicação para a sua causa. Como consequência dos desmaios, Yasuaki não conseguia encontrar emprego permanente, já que frequentemente tinha que ser levado para o hospital. Esta situação continuou até 1960, quando ele foi trabalhar no Hospital da Bomba Atômica da sua cidade, Nagasaki Genbaku Byoin, no cargo de administrador de um departamento.

Yasuaki em frente ao Hospital da Bomba Atômica.

No hospital, Yasuaki tomou consciência de como os efeitos da bomba causavam todo tipo de doença nos hibakusha– os sobreviventes da mesma. O trabalho de Yasuaki não estavafocadoapenas no lado administrativo, já que ele passou a ter uma relação muito intensa com os pacientes ao entrar em contato direto com os bebês nascidos com deformidades e com os numerosos casos de câncer em pessoas que haviam sido expostas à radiação. Ele ficou particularmente impressionado com um jovem da sua idade que foi diagnosticado com leucemia e a quem Yasuaki doava sangue sempre que necessário. A deterioração física seguida pela morte do jovem marcou fortemente Yasuaki, pois ele estava se olhando no espelho; eleera constantemente lembrado que a qualquer momento poderia ficar doente.

Além disso, Yasuaki foi vítima de discriminação como resultado do medo infundado de uma parte da população que acreditava que poderiam “pegar” as doenças das pessoas expostas à radiação. As mulheres jovens, em particular, eram rejeitadas e tinham dificuldades de se casar por causa da probabilidade de que seus filhos nasceriam deformados. Desde então, Yasuakipassou a esconder o fato de que era um dos sobreviventes da bomba e se negava a falar sobre a sua experiência, entrando assim num longo período de silêncio sobre aquele marco na sua vida. O escritor japonês Kenzaburo Oe, Prêmio Nobel de Literatura em 1994, explica esse comportamento ao salientar que apenas os sobreviventes têm todo o direito de se manter em silêncio caso desejarem, para que possam tentar esquecer a sua terrível experiência.

Durante esta fase da sua vida, o jovem Yasuaki passou a se interessar pelo México. O que lhe chamou a atenção a este país?

Em primeiro lugar, a música; um trio chamado “Los Panchos,” que tocava boleros, se tornou muito popular no Japão, ao ponto desses músicos mexicanos gravarem suas canções em japonês. Além disso, a cultura mexicana, pintura mural e história dos povos mesoamericanos começaram a despertar o interesse do público japonês. O livro do pintor Tamiji Kitagawa, que viveu no México antes da guerra,foi outro grande incentivo para que Yasuaki mergulhasse na história daquele país e começasse o estudo da língua espanhola, ao qual ele se dedicou com grande afinco e entusiasmo.

Apesar de ter um excelente trabalho no hospital, o sofrimento dos pacientes e o seu desejo de esquecer todo esse ambiente contaminado pelo sofrimento e pela discriminação fizeram com que Yasuaki buscasse de modo quase obsessivouma maneira de viajar para o México. Ele teve a sua chance em 1968, durante os Jogos Olímpicos no México; a delegação japonesa solicitou os serviços de um jovem japonês que pudesse servir como intérprete – trabalho que Yasuaki começou a fazer imediatamente.

Após a conclusão dos Jogos Olímpicos, ele decidiu se estabelecer permanentemente no México para procurar emprego e aprofundar seus estudos não apenas de espanhol mas também dos povos pré-hispânicos e sua cultura. Ele fez vários cursos no Museu Nacional de Antropologiae começou a viajar para todos os sítios arqueológicos do país. Seu profundo interesse pelas culturas mexicanaso levou a estudar a língua nahuatl, idioma que lhe permitiu entrar em contato direto com os indígenas.

A expansão e o acelerado crescimento que a economia japonesa vivenciou ao longo das décadas levaram centenas de empresas japonesas a abrir fábricas e escritórios no México. No início de 1970, o seu domínio do idioma espanhol permitiu que Yasuaki assessorasse os funcionários dessas empresas como tradutor e intérprete. Seu trabalho intenso e bem remunerado, além do seu grande interesse pela cultura e pelo povo do México, fizeram com que ele decidisse permanecer no país e pedir sua naturalização como cidadão mexicano.

Além disso, Yasuaki acreditava que as culturas mexicana e japonesa não eram tão distantes como aparentemente se acreditava, já que a filosofia xintoísta e aquela dos povos mesoamericanos têm muitas semelhanças.

Foi apenas em1995 que Yasuaki decidiu romper o seu longo período de silêncio com respeito à sua condição como hibakusha. Na cidade de Querétaro, alguns jovens o convidaram para dar uma palestra sobre sua experiência como sobrevivente da bomba atômica, já que sabiam que ele havia nascido em Nagasaki. A princípio, Yasuaki se recusou categoricamente, mas acabou concordando em participar da conferência. Desde então, suas palestras e conferências se tornaram um bálsamo, uma terapia para Yasuaki, lhe permitindo atenuar a grande dor que guardava dentro de si.

Yasuaki também acreditava que o seu esforço pessoal deveriafazer parte do movimento mundial contra o uso de armas nucleares e a favor da paz. Tendo isso em mente, ele foi se integrando aos grupos organizados de sobreviventes da bomba atômica nos Estados Unidos e às organizações em diferentes países que promovem a destruição das armas nucleares.

Yasuaki tem sido um peregrino incansável, viajando a vários países ao redor do mundo para expor de forma clara e detalhada a experiência que vivenciou em Nagasaki. Ele fez diversas palestras em organizações das Nações Unidas e de vários governos, onde explicou porque defende a destruição total do arsenal atômico. O trabalho que Yasuaki faz com os jovens é umas das tarefas que ele acha mais apaixonante; ele visita numerosas escolas para que no futuro os alunos continuem a disseminar a sua mensagem e que tomem o seu lugar na luta contra as armas atômicas. As consequências do desastre nuclear no terminal de Fukushimano Japão após o terremoto e tsunami de 2011 demonstraramque até mesmo o uso pacífico da energia atômica nessas usinas pode levar ao fim da humanidade.

Yasuaki acompanhado por estudantes mexicanos durante uma de suas palestras.  

Aos 77 anos de idade, Yasuaki participa com grande paixão em duas atividades: o seu trabalho pela paz, como quer dizer o seu próprio nome em japonês (保昭), para que nunca mais uma outra pessoa tenha que sofrer as consequências de uma tragédia nuclear como aquela vivenciada por ele e pelos cidadãos de Nagasaki e Hiroshima. Com a mesma intensidade, o seu trabalho como pintor e ceramista lhe trouxe reconhecimento e prêmioscomo artista. Atualmente, ele mora na cidade de San Miguel de Allende, no estado de Guanajuato.

Pintura de Yasuaki Yamashita.
Cerâmica de Yasuaki Yamashita.

Kenzaburo Oe sabe definir perfeitamente o caráter dos hibakusha, afirmando que quando resolvem falar, eles o fazem com todo vigor. Não cabe a nós, desafia o escritor japonês, a nos manter passivos ou meramente comovidos pelas suas histórias. Ao invés disso, temos que “nos tornar seus companheiros porque essa é a única maneira que temos de seguir adiante comoautênticos seres humanos.”

 

© 2016 Sergio Hernández Galindo

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About the Author

Sergio Hernández Galindo é formado na Faculdade do México, se especializando em estudos japoneses. Ele publicou numerosos artigos e livros sobre a emigração japonesa para o México e América Latina.

Seu livro mais recente, Os que vieram de Nagano. Uma migração japonesa para o México (2015) aborda as histórias dos emigrantes provenientes desta Prefeitura tanto antes quanto depois da guerra. Em seu elogiado livro A guerra contra os japoneses no México. Kiso Tsuru e Masao Imuro, migrantes vigiados ele explica as consequências das disputas entre os EUA e o Japão, as quais já haviam repercutido na comunidade japonesa décadas antes do ataque a Pearl Harbor em 1941.

Ele ministrou cursos e palestras sobre este assunto em universidades na Itália, Chile, Peru e Argentina, como também no Japão, onde fazia parte do grupo de especialistas estrangeiros em Kanagawa e era bolsista da Fundação Japão, afiliada com a Universidade Nacional de Yokohama. Atualmente, ele trabalha como professor e pesquisador do Departamento de Estudos Históricos do Instituto Nacional de Antropologia e História do México.

Atualizado em abril de 2016

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