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Nikkeis Desaparecidos: Ressurgidos na Consciência Argentina - Part 2

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Minha família passou por um momento difícil. Não é como se você pudesse ir à polícia e pedir ajuda para encontrar meu pai; eles eram cúmplices do estado de terrorismo. Não tenho certeza de como minha mãe fez tudo, mas ela conseguiu encontrar outros parentes de desaparecidos. Ela saía durante o dia e voltava tarde da noite. Minha avó Teresa e eu ficávamos olhando pelas persianas, esperando ouvir o carro da minha mãe para que pudéssemos descer as escadas para ajudar a abrir a porta pesada de metal da garagem para ela.

Aqueles dias pareciam infinitos, enquanto eu vivia com o medo de que a ditadura também levaria a minha mãe. Muitas crianças ficaram sem os dois pais. Minha mãe era uma mulher dura; ela não tinha medo de falar o que pensava e não se importava com quem estava na frente dela. Minha avó e eu sabíamos disso, e por isso temíamos por sua vida, durante essa época em que falar o que se pensa poderia levá-la a grandes problemas ou piores.

Minha mãe conheceu Mary Higa, cujo irmão desaparecido, Juan Carlos Higa, estudante de literatura na faculdade e jornalista do Akoku Nippo e La Plata Hochi, os dois principais jornais da comunidade nipo-argentina. Juan Carlos também foi um poeta realizado. Sua mãe estava cega e muito doente, mas ela esperou o tempo que pode, porque tinha certeza de que seu filho voltaria. Infelizmente, isso nunca aconteceu.

Beba e Maria visitaram outras famílias Nikkeis cujos parentes foram sequestrados. Juntos, fundaram não oficialmente o Familiares de Detenidos e Desaparecidos da Colectividade Japonesa en la Argentina (Parentes dos Detidos e Desaparecidos da Comunidade Japonesa na Argentina), que ainda esta em vigor hoje. A irmã mais velha de Jorge, Elsa Oshiro, continua a busca por justiça e a demanda de saber o que aconteceu com todos os membros da nossa família.

Muitos desaparecidos tiveram dupla cidadania com outros países. Os sortudos eram cidadãos de países que atuavam com rapidez o suficiente para apresentar uma petição de habeas corpus, obrigando os sequestrados a serem libertados a eles, após o qual poderiam entrar no exílio.

O governo japonês não queria se envolver com os desaparecidos e assuntos internos da Argentina. O governo italiano estava mais disposto; eles emitiram um passaporte italiano com o nome do meu pai para que todos pudéssemos ir para a Itália se ele fosse libertado.

Por dez anos, minha mãe procurou meu pai de todas maneiras possíveis. Uma vez, ela recebeu uma dica sobre onde ele poderia estar, de uma testemunha que foi libertada. Dirigimos passando limites da cidade de Buenos Aires, cheios de esperança, pensando que este seria o dia que todos esperávamos. Mas, mais uma vez, fomos para casa de mãos vazias. Minha mãe nunca perdeu a esperança e sempre tinha novas ideias para encontrar Oscar. Durante muito tempo, mantive a mesma esperança. Toda vez que a campainha tocava, eu esperava ver o rosto do meu pai, mas sempre acabava desapontado.

Em 1983, Raúl Alfonsín foi eleito novo presidente da Argentina. O país estava voltando para a democracia e minha mãe, eu e todos os parentes que conhecíamos achávamos que os desaparecidos que ainda estavam vivos nos campos de detenção seriam libertados. Durante a campanha de Alfonsín, ele prometeu aos eleitores que não haveria impunidade pelos crimes cometidos durante os anos de estado de terrorismo de 1976 a 1983.

Em 1986, o presidente Alfonsín assinou a controvertida Ley de Punto Final (Lei de Ponto Final), que impediu a perseguição de membros dos militares e civis envolvidos no estado de terrorismo. O Congresso revogou a lei em 2003, mas minha mãe não viveu para ver esse evento. Ela só viu que a justiça não estava sendo servida e que os assassinos andavam livres entre nós.

Percebendo que meu pai não estava retornando, minha mãe decidiu deixar o país comigo e meu irmão Leonardo, mas surgiram muitos problemas. Para sair, precisávamos ter um passaporte válido e permissão do meu pai, já que meu irmão e eu ainda éramos menores de idade. Como meu pai havia "desaparecido", ele ainda era considerado vivo pela lei.

Minha mãe conseguiu obter a permissão de um juiz fingindo que íamos sair de férias e voltar. Para nós, foram férias permanentes; não consegui voltar para a Argentina até os 18 anos.

Eu, meu irmão Leonardo e minha obaa-chan Ikuko Oshiro na Itália.

Mudar-se para a Itália era como o início de um novo dia para minha mãe, meu irmão e eu. Nunca esquecemos meu pai; ele sempre esteve lá por trás de nossas mentes. Minha mãe nunca se casou, nem mesmo depois que ela recebeu seu atestado de óbito. Ela me disse que ele era o amor de sua vida e não era bom substituí-lo por outra pessoa, já que ninguém podia se comparar com ele.

Nunca mais falamos sobre meu pai. Nós o lamentamos em silêncio. Acho que ela lamentava por não poder salvá-lo. De vez em quando, ela dizia uma frase sobre meu pai, algumas palavras com profundo significado. Como quando ela disse a um dos meus amigos que meu pai estava cansado de correr e chateado por ter tentado ajudar as pessoas e tudo estava voltando para assombrá-lo como uma maldição. As forças armadas continuavam perseguindo-o até que o pegassem.

Minha mãe comprou um laboratório fotográfico industrial na província de Treviso, na região do Veneto. Eu estava frequentando uma escola científica, mas implorei a minha mãe para me deixar escolher meu próprio caminho e ela concordou. Fiz várias provas e entrei em uma escola de artes plásticas.

Esse período da minha vida era como um renascimento. Encontrei meu lugar no mundo; eu poderia finalmente me expressar livremente sem ter medo de quem estava na minha frente. Fiz amigos então que ainda chamo de família, mesmo agora depois de vinte anos.

Quando eu estava na Argentina, não podíamos dizer a ninguém que meu pai estava desaparecido. Eu mentiria para estranhos, dizendo-lhes que meu pai estava no trabalho se eles perguntassem. Com tantos informantes trabalhando para a ditadura, você não podia simplesmente dizer o que quisesse. Vivíamos sempre com a nossa guarda alta, olhando por cima dos nossos ombros para garantir que ninguém estava nos seguindo.

Quando andava pelas ruas de Treviso, sentia-me seguro. Eu poderia ser aquele garoto despreocupado que deveria ser na Argentina, com problemas normais, como estudar para provas e pegar esboços para a aula de desenho.

Treviso, na década de 1980 e 90, não tinha uma comunidade japonesa ou qualquer outro asiático. Eu era o único Nikkei na escola e na cidade, exceto os turistas japoneses ocasionais. Meus professores lembrariam meu nome na primeira semana de escola, o que significava que sempre era destacado, mas não me importava. Achava engraçado. Meus colegas de classe eram curiosos sobre mim, assim como eu era sobre eles. Nós só nos encaixamos. Isso não acontecia na escola científica, mas na escola de arte, éramos todos um tanto estranhos aos olhos de outras crianças da escola, então eu me adaptei.

Depois de terminar a escola de arte em 1991, minha mãe decidiu enviar meu irmão Leo para morar com meus avós na Argentina. Ela então providenciou vender o laboratório fotográfico onde eu estava ajudando depois da escola, arrumar tudo e voltar sozinha para a Argentina. Na época, eu não conseguia entender seus motivos.

Ela estava doente e nos escondeu até quase o fim. A primeira coisa que fez em Buenos Aires foi encontrar-se com Mary Higa. Então ela voltou para seus velhos caminhos, tentando encontrar respostas sobre meu pai.

Naquela época, juízes italianos procuravam sobreviventes desaparecidos para serem testemunhas para processarem membros da ditadura militar. Isso era algo que o governo corrupto do presidente Carlos Menem não fazia, de modo que outros países tiveram que intervir para buscar justiça para seus desaparecidos. Menem libertou e perdoou todos os assassinos. Isso foi um chute na cara, não só para minha mãe, mas para todas as famílias dos desaparecidos.

Em 28 de fevereiro de 1995, minha mãe, Edvige "Beba" Bresolin Oshiro, morreu em Buenos Aires. Ela ainda estava pensando em meu pai, chamando seu nome.

O que aconteceu com meu pai? Como isso aconteceu? Sobre o que ele estava pensando? Onde ele esta enterrado? Estas são as questões que continuam a perdurar. Será que um dia terei alguma resposta? Eu realmente espero que sim, mas como não consigo achar as respostas no mundo exterior, tomei a estrada introspectiva.

Tudo começou quando decidi ajudar o jornalista Nikkei, Andrés Asato, a encontrar informações sobre o meu pai para um livro que ele esta escrevendo sobre os 16 Nikkeis desaparecidos. No começo, não queria escavar aquelas memórias dolorosas. Mas quando eu li o capítulo do meu pai e achei que estava quase vazio, isso me estimulou a falar sobre como era meu pai como pessoa.

Circunstâncias ou coincidência colocaram esse jornalista no meu caminho. Eu não estava esperando essa pessoa, que conheci através de um bate-papo na internet, ter tanto impacto. Ajudar Asato a encontrar meu pai, pelo menos no papel, me fez perceber o que eu preciso fazer, não apenas para mim, mas para minha família e especialmente para honrar meus pais. Quero devolver ao meu pai essa identidade e essa voz que a ditadura militar tentou retirar.

Meu pai, como os outros 30.000 desaparecidos, não eram "N.N." (nomen nescio, que se traduz a grosso modo para "nome desconhecido"), como a ditadura cruel escreveu em lápides do cemitério. Eles também não eram números. Os desaparecidos foram mortos porque os militares tinham medo deles. Eles tinham medo de suas ideias, seus valores e suas convicções. Acima de tudo, eles tinham medo de sua humanidade, algo que os ditadores nunca poderiam compreender.

As técnicas sádicas de tortura e matança nos centros de detenção e as condições em que os desaparecidos foram mantidos são prova de que as pessoas na ditadura não tinham humanidade. Eles são chamados de pessoas simplesmente porque olham a parte e tem o material genético, mas faltam as coisas que tornam as pessoas humanas, como sentimentos, compaixão e a capacidade de reconhecer o certo do errado. Se você conversa com os que estão agora encarcerados, eles não sentem remorso e continuam a justificar suas ações. Não há redenção para eles e realmente sinto muito por eles. Por sorte, não perco o sono por eles; prefiro pensar em criar uma saída artística.

Depois de 38 anos, decidi abrir e compartilhar a história da minha família, da forma que eu melhor sei - através da música e da pintura. Espero que no próximo ano eu possa encontrar um espaço e um patrocinador para fazer uma instalação de arte em Buenos Aires em homenagem ao 100º aniversário da Associação Japonesa na Argentina (AJA). Fazer isso fecharia um círculo e talvez eu encontrasse algum encerramento depois de tudo.

Em 24 de setembro de 2015, o único advogado do círculo de amigos de meu pai que ainda esta vivo enviou uma mensagem para me informar que o prefeito e a cidade de Avellaneda, onde meu pai trabalhava, decidiram honrar a memória dos quatro advogados desaparecidos ao nomear os quatro cantos da cidade por eles.

Agora, o nome do meu pai e dos outros três advogados desaparecidos estão inscritos em placas de rua para que todos possam ver e lembrá-los. Vejo isso como um tapa na cara para quem tentou apagar os melhores cidadãos da Argentina da superfície da Terra.

A placa de rua que leva o nome do meu pai.  

Nós, gente da Argentina, nunca esqueceremos aqueles que não estão mais aqui fisicamente, mas que vivem sempre em nossos corações e memórias. As gerações vindouras continuarão a ouvir as vozes que uma ditadura militar tentou silenciar em vão.

 

© 2016 Gaby Oshiro

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About the Author

Gaby Oshiro nasceu em Buenos Aires, Argentina, e cresceu em Treviso, na Itália. Gaby pegou seu amor pelas artes visuais e pela música de seus pais. Depois da escola de artes plásticas em Treviso, Itália, iniciou sua própria pesquisa através da música, pintura e macrofotografia e fundindo tudo em instalações de arte. Ela esta sempre à procura daquela beleza elusiva escondida que não pode ser vista a olho nu. Confira seu website e blog.

Atualizado em março de 2016

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