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A falta que faz uma mercearia japonesa

Há alguns anos, trabalhava em uma editora localizada no bairro de Vila Mariana, em São Paulo. Perto, havia uma mercearia oriental, onde eu costumava comprar um bento na hora do almoço.

Não era todo dia que eu comprava bento; creio que duas ou três vezes por semana no máximo. Comprava também um pão de fôrma estilo oriental que não se encontra em mercados e padarias comuns. De vez em quando, sentia vontade de comer manju. Às vezes era shoyu, kare, chikuwa para fazer o jantar… Ou seja, aquelas “emergências” do dia a dia, que eu também comprava na saída do trabalho para levar para casa.

Talvez seja um impulso genético ou algo fisiológico, porque às vezes sinto muita vontade de comida japonesa. Nem sempre é fácil, rápido e barato ir a um restaurante. Então, uma passada em uma mercearia japonesa provavelmente é o suficiente para resolver a questão.

Só que… a mercearia fechou. Eu mudei de trabalho, mas, eventualmente, quando estava na região, ainda comprava um bento vez ou outra. Porém, fiquei um tempo sem ir lá. Quando voltei, depois de alguns meses, encontrei os portões fechados e o interior em obras. Imaginei que poderia ser apenas uma reforma, mas o local agora é uma lanchonete comum.


Nova iniciativa

Um hábito para alguns, novidade para outros. As mercearias japonesas oferecem produtos que atraem tanto Nikkeis como não descendentes.

“O interessante é que os Nikkeis ensinam os não nikkeis. Por exemplo, eles mostram o onigiri, explicam o que é, o modo de abrir a embalagem e como comer”, conta Elisa Sayuri Suto, sansei, sócia da Dai Suki, mercearia recém-inaugurada em São Paulo.

“Queremos replicar o conceito de konbini no Brasil, com adaptações ao mercado brasileiro”, afirma Fernando Kajihara, também sansei e sócio de Elisa.

Fachada da Dai Suki é inspirada nos konbinis (Foto por Henrique Minatogawa)

A ideia surgiu quando ambos foram ao Japão para fazer arubaito (trabalho temporário). “A gente ia praticamente todo dia ao konbini. Comprávamos principalmente bento, que era bem prático”, lembra Fernando.

“Junto com os produtos, queremos trazer um pouco da cultura do Japão. Por exemplo, temos aquela bandeja em que o cliente coloca o dinheiro, sem contato direto com o atendente”, continua. A bandeja foi comprada no Japão, pois Elisa e Fernando não quiseram improvisar.

Esse é um costume que não existe em lojas brasileiras, em que o dinheiro, cartão, cheque, troco e nota fiscal passam diretamente entre as mãos de consumidor e vendedor. “É difícil colocar em prática porque os brasileiros não estão acostumados. As pessoas que já conhecem identificam rapidamente e usam normalmente”, conta Elisa.

Além disso, a loja utiliza a internet para divulgar seus produtos e também mostrar mais informações sobre cultura japonesa. “Fazemos posts em redes sociais explicando aspectos da cultura japonesa, como o obon, e também sobre comidas típicas, como o ichigo daifuku”.


Onde comprar

Ainda hoje, o bairro da Liberdade, na região central de São Paulo, concentra a maioria das lojas e restaurantes orientais da cidade. Ir até lá nem sempre é fácil, pois o trânsito é intenso, tanto de carros como de pessoas, e o preço dos estacionamentos é alto. A presença de lojas de produtos orientais espalhadas em bairros é algo sensato e apreciado.

Em São Paulo, há bairros com maior concentração de Nikkeis, especialmente na zona sul. O bairro do Paraíso, onde a Dai Suki está localizada, é um deles. “Muitos clientes falaram que sentiam falta de uma loja assim na região, pois agora não precisam mais ir até a Liberdade para comprar apenas um ou dois produtos”, diz Fernando.

“Os descendentes procuram produtos orientais porque já conhecem. Os não descendentes também estão procurando, pois conhecem a culinária japonesa e gostam. Muitos procuram o temaki, que é o mais popular hoje. A gente acaba ensinando e mostrando outras coisas”, acrescenta Elisa.

A loja tem apenas algumas semanas em funcionamento, mas os sócios já fizeram algumas constatações. A maior parte dos clientes são estudantes de uma escola que fica do outro lado da rua. Segundo Elisa e Fernando, eles compram principalmente bento, balas, salgadinhos e nori, sendo o onigiri o “campeão de vendas”.

Nessa escola, estudam muitas crianças e adolescentes descendentes de japoneses, chineses e coreanos. Dessa forma, o reconhecimento e aceitação de produtos japoneses tende a ser mais simples, inclusive porque muitos desses alunos já foram ao Japão, segundo constataram Elisa e Fernando.

O difícil para os sócios, por enquanto, é superar a inexperiência de administrar o primeiro negócio. As famílias não têm tradição no ramo do comércio. “Ainda há muitos produtos que não conhecemos. Estamos pesquisando e aprendendo”, afirma Elisa.

Fernando foi bolsista pela província de Ehime em 2014, quando foi estagiário em uma agência de publicidade. “Queria ter experiência em uma empresa japonesa. Já estava com a ideia de montar um negócio no Brasil, então quis ver como funcionava no Japão e trazer para cá. Como éramos apaixonados pelos konbini, essa foi a inspiração. Estou conseguindo aplicar o que aprendi aqui na nossa empresa”, conta.

Formada em administração de empresas, Elisa foi ao Japão em duas vezes, ambas para arubaito, durante as férias da faculdade. “Queria ir para conhecer o Japão. Foi um sonho. A educação dos japoneses é algo fora do comum. Especialmente os atendentes de lojas. É isso que a gente tenta replicar aqui. Sempre atender com boa vontade, procurar ajudar os clientes”.


Valor da experiência

Com mais tempo em operação e muita experiência adquirida, a mercearia Enman já entrou no seu décimo sétimo ano desde a fundação, no ano 2000, no bairro da Saúde, em São Paulo.

“Quando meu pai e eu viemos para este ponto, a ideia era montar um minimercado”, conta Naomi Maeda, nisei, que, ao lado dos três irmãos, administra o negócio. “Nós vendíamos coisas como sardinha em lata, óleo, para atender os condomínios próximos. Depois, começamos a colocar alguma coisa japonesa. Começou a vender. Quando estávamos até de portas fechadas, limpando o chão, começaram a aparecer os vendedores [de produtos orientais]”.

Então o minimercado tornou-se uma mercearia oriental. “Um ano depois, conversei com meu pai e perguntei ‘de quem foi a ideia de mercado oriental?’. ‘Não foi sua?’, ele respondeu. Eu achava que tinha sido dele. Foi algo que aconteceu naturalmente”, lembra Naomi.

“Desde pequenos, meus irmãos e eu ajudávamos no mercado”, conta Naomi Maeda, da Enman (Foto por Henrique Minatogawa)  


Transmissão de conhecimento

Segundo Naomi, atualmente, a maior parte da clientela é formada por pessoas da terceira idade que moram nas proximidades. A região tem muitos condomínios residenciais, com forte presença de Nikkeis.

“O cliente da terceira idade vêm todos os dias. Compram principalmente mochigome, shiromochi, arroz, shoyu, tofu, konbu, nori, kanpyo, nishime, manju e ingredientes para fazer sushi”, aponta Naomi.

Apesar de o descendente de japoneses constituir a maior parte dos clientes da Enman, a quantidade de não descendentes vem aumentando. Isso pode ser explicado pelo fato de a gastronomia japonesa já ser bem conhecida no Brasil. “São pessoas que têm formação, fizeram faculdade, acessam internet e têm uma cultura de conhecer restaurantes. Têm amigos orientais que divulgam e ensinam a fazer algum prato”, conta.

A questão de ensinar a preparar um prato japonês é destacada por Naomi. Não apenas pelo fato da culinária em si, mas considerando a tradição também. “Sempre fiz questão de preservar a cultura japonesa. É importante tanto o descendente como o não descendente saberem como preparar um prato japonês; levar os ingredientes para casa e fazer. Cada vez mais, a terceira idade está desaparecendo. Pessoas da minha idade não sabem fazer e vêm perguntar para mim. Eu faço cursos para aprender e experimento em casa, para poder passar adiante. Não é só vender um pacote de nori. É preciso saber como prepará-lo. Como fazer um arroz japonês mais gostoso, um gyoza mais sequinho, qual shoyu é mais indicado para cada prato”, explica.


Aprendizado

A atenção para identificar a necessidade do cliente, Naomi herdou do pai. “Ele foi um comerciante nato. Todo lugar aonde vou, sempre lembram do meu pai. Quando ficou doente, ele me disse ‘aproveite tudo que você tem para aprender porque ninguém é eterno’”.

Em meados dos anos 80, a família montou o seu primeiro mercado. Alguns anos mais tarde, o Brasil passou por sérias crises econômicas. A situação da época fez com que a família fechasse o mercado e partisse para outro empreendimento, que não vingou. “Passamos por muitas dificuldades, até que resolvemos montar esta lojinha. Só minha irmã e eu. Como não tínhamos condições de ter funcionários, dividíamos todas as tarefas entre nós”.

Por que, então, montar novamente um mercado?

“Vender está no sangue”, explicou Naomi imediatamente. “Desde pequenos, meus irmãos e eu ajudávamos no mercado. No caixa, no pacote, repondo mercadorias, na padaria... em todos os setores. Naquela época, uma criança podia ajudar, pois não era perigoso como hoje”, lembra.

O pai de Naomi morreu há 10 anos. “Até o sexto ano da loja, ele ficava lá. Mesmo doente, ele ficava em uma cadeirinha, só olhando o movimento. Ele gostava. Ele queria ver, estar junto”.

Algum tempo depois, um grande distribuidor de hortifruti propôs que a família abrisse uma unidade da loja dentro de seu estabelecimento. “Eu fiquei meio perdida, porque meu pai que era nosso porto seguro. Era meu alicerce. Então, eu pensei que se ele estivesse vivo, ele diria para aceitar”, conta.

Atualmente, portanto, a Enman conta com duas unidades. Ambas são administradas por Naomi e seus três irmãos, que se revezam no comando. “É muito importante o proprietário estar presente para ver o que está acontecendo, saber o que vende mais e menos. Além disso, o dono tem um olhar diferente. Naturalmente vai querer explicar, indicar algum produto”, completa Naomi.

As mercearias japonesas no Brasil desempenham um papel importante na preservação de hábitos alimentares japoneses e também de cultura. Durante minhas visitas para a produção deste artigo, vi crianças e adolescentes comendo onigiri durante o intervalo das aulas; também vi idosos comprando arroz e ingredientes japoneses.

Espero que todos possamos comprar um bento para o almoço por muito tempo.

P.S. A mercearia onde eu costumava ir continua funcionando, mas em outro local.

 

© 2016 Henrique Minatogawa

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About the Author

Henrique Minatogawa é jornalista e fotógrafo, brasileiro, nipo-descendente de terceira geração. Sua família veio das províncias de Okinawa, Nagasaki e Nara. Em 2007, foi bolsista Kenpi Kenshu pela província de Nara. No Brasil, trabalha na cobertura de diversos eventos relacionados à cultura oriental. (Foto: Henrique Minatogawa)

Atualizado em julho de 2020

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