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História nº 26 (Parte II): “Não volta, não! Fica aí no Japão!”

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Key retorna para casa depois do zangyo1. Abre a caixa de correspondência e vê um monte de panfletos: “Seria bom se eu soubesse ler todas essas letras”. Dá uma olhada em cada propaganda, quando surge do meio um envelope.

Entra apressadamente, acende a luz e vê o destinatário: era a sua mãe! “Kaasan2 escrevendo carta? Que milagre!” e abre para ver.

Dentro havia somente uma foto. “O quê!? Um pé de cerejeira? É Kaasan com a Elisa no colo! Mas no Brasil também floresce a cerejeira?”

No verso da foto estava escrito bem grande: Não volta, não! Fica aí no Japão! e ele, sem querer, riu.

“Só podia ser a Kaasan! Ela nem ouve direito o que a gente fala! Eu nunca disse que ia voltar logo para o Brasil! Disse sim que vou trabalhar mais dois anos e depois vou buscar todo mundo, assim que eu falei quando telefonei!”

Mas, de repente se lembrou de algo que ainda não tinha contado a ela...

De fato, tinha falado ao telefone que ia buscar todo mundo no Brasil, só que não mencionou que esse “todo mundo” não incluía a esposa Cristina. Não falou sobre isso, também nem podia.

Para dizer a verdade, o casamento de Key e Cristina não ia bem desde o começo e, quando Key ficou desempregado, a crise estava no auge.

A decisão de ir trabalhar no Japão foi motivo suficiente para pôr fim ao casamento. Key contou ao seu pai, mas para a mãe não, achou melhor dar um tempo. Não podia falar para a mãe, justo ela que recebeu Cristina de braços abertos, quando Key foi morar na casa dos pais levando junto a esposa e a filhinha. “A minha nora é uma pessoa e tanto! Trabalha num grande hospital como enfermeira e ganha muito bem. Se dá bem com todo mundo, além de ser muito bonita!” – assim dizia toda orgulhosa para as vizinhas.

A sua mãe estava animada mesmo. Quando Cristina tinha plantão à noite, sempre lhe preparava uma marmita, fazia questão de levar a única netinha à creche, depois ia pegá-la, até o seu marido ela passou a tratar com mais carinho do que antes.

Um dia, por acaso Key ouviu Cristina falando ao celular: “Já estou cheia de viver com essa japonesada! Tenho que sair daqui o quanto antes”.

Ele ouviu, mas não se abalou. Sabia que ela estava conversando com um estagiário do mesmo hospital onde trabalhava. Pois ele tinha visto os dois juntos no Facebook! Na festa de final de ano do hospital, um jovem de óculos aparece rodeado pelas colegas e, de braço dado com ele, está Cristina. No Carnaval, ela e esse jovem aparecem dançando em meio à folia. A verdade é que Cristina não podia viver um dia sequer sem postar alguma foto dela no Facebook.  

No Japão, Key procurou não acessar mais o Facebook, mas um dia ele acabou vendo: era uma selfie da Cristina com o homem de óculos de sol debaixo de um céu azul com o título “Sidney eu te amo”.

Por uma ironia do destino, Key e Cristina se conheceram através do Facebook e também foi pelo Facebook que os dois se viram separados.

A fotografia que sua mãe enviara, ele colocou perto da porta que dá para a rua. Assim, toda vez que saía podia olhar e dizer: Ittekimassu!3 E ao chegar, entraria falando Tadaima!4.  Só de pensar, ele se emocionava.

Key decidiu que um dia todos viveriam juntos no Japão: ele, seus pais e Elisa. Estava firme para conseguir alcançar este objetivo.

Notas:

1. hora extra
2. “Mamãe”
3. “Vou e volto”: cumprimento de quem está saindo dirigido a quem permanece em casa.
4. “Voltei neste momento”: cumprimento de quem está chegando em casa.

 

© 2016 Laura Honda-Hasegawa

Brasil dekasegi ficção trabalhadores estrangeiros Japão Nikkeis no Japão
Sobre esta série

Em 1988 li uma notícia sobre decasségui e logo pensei: “Isto pode dar uma boa história”. Mas nem imaginei que eu mesma pudesse ser a autora dessa história...

Em 1990 terminei meu primeiro livro e na cena final a personagem principal Kimiko parte para o Japão como decasségui. Onze anos depois me pediram para escrever um conto e acabei escolhendo o tema “Decasségui”. 

Em 2008 eu também passei pela experiência de ser decasségui, o que me fez indagar: O que é ser decasségui?Onde é o seu lugar?

Eu pude sentir na pele que o decasségui se situa num universo muito complicado.

Através desta série gostaria de, junto com você, refletir sobre estas questões.

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About the Author

Nasceu na Capital de São Paulo em 1947. Atuou na área da educação até 2009. Desde então, tem se dedicado exclusivamente à literatura, escrevendo ensaios, contos e romances, tudo sob o ponto de vista nikkei.

Passou a infância ouvindo as histórias infantis do Japão contadas por sua mãe. Na adolescência lia mensalmente a edição de Shojo Kurabu, revista juvenil para meninas importada do Japão. Assistiu a quase todos os filmes de Ozu, desenvolvendo, ao longo da vida, uma grande admiração pela cultura japonesa.

Atualizado em maio de 2023

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