Descubra Nikkei

https://www.discovernikkei.org/pt/journal/2015/7/1/5859/

História nº 24: Diário da menina que queria ser japonesa (4)

Leia História nº 24 (3) >>

4/3/2011

Batchan precisou ir a Campo Grande porque a irmã dela foi internada. Desse modo, vou ficar por um tempo na casa da tia Nair. Tenho os meus três primos e o caçulinha, o Noah, ele é muito fofo, acho que está com 2 anos.

Comparando com o tempo que estava no Japão, a vida aqui no Brasil é muito divertida, eu adoro! Quando estava no Japão eu ficava na escola das 7 e meia da manhã até 6 horas da tarde. A minha classe tinha apenas 8 alunos e com 3 deles eu tinha a maior amizade, mas no fim de 2008, metade dos alunos já não estava mais frequentando. Eles tinham ido embora, como a minha amiga Aline que acabou voltando para o Brasil. A Mammy dizia “É a crise!”, mas eu não entendia muito bem o que era isso.

Os alunos foram diminuindo cada vez mais e em casa também éramos apenas duas, a Mammy e eu. Não havia tanta gente à minha volta. Eu sabia que tinha a Batchan, meus tios, minhas tias e meus primos no Brasil, pois eu tinha visto em fotografia. E quando a Mammy telefonava, sempre no final me passava o fone para falar alguma e eu só dizia “Como vai?”. A vizinhança era de só japoneses e a gente não se cumprimentava.

Mas quando cheguei aqui, o Brasil pareceu mesmo um mundo diferente e eu fui gostando cada vez mais. A nossa vizinha dona Cláudia sempre me pergunta como vou indo na escola e depois que soube que a Batchan está em Campo Grande para cuidar da irmã doente, ela sempre pergunta e diz que estima melhoras.

A escola que frequento é pelo menos 5 vezes maior que a escola para brasileiros do Japão. O número de alunos passa de 400 e tem muito mais professores, claro. A escola do Japão não tinha professores suficientes, então era comum cada professor ensinar duas ou mais matérias e na mesma sala estudavam alunos de séries diferentes. Mas aqui não, mais ou menos 35 alunos da mesma série estudam numa mesma classe, o professor ensina a mesma matéria para todos e a aula rende.

Mas tem uma coisa que eu ainda não me acostumei, que é a gritaria que os meninos fazem. Se o assunto é futebol, começa um bate-boca sem fim e, por mais que tampe os ouvidos, o barulho é demais. Nem sei como eles podem gostar tanto de futebol.

Entre as meninas, o assunto é mesmo a moda! Diferente do Japão, aqui a menina pode ir maquiada pra escola, pode usar bijuteria, ir de sandália, sem problema. Quando contei isto para a Sakura, que ainda está no Japão, ela ficou surpresa e disse que tem inveja. Mas eu tenho o meu estilo e acho isso legal. Agora eu estou dando vida nova nas camisetas, colocando brilho, apliques, bordadinhos, o que a criatividade mandar. Tenho até encomendas de amigas. As meninas brasileiras não têm muito jeito para trabalhos manuais, não?

Bem, vou indo porque preciso ajudar a titia.

Querido Diário, falou!


23/7/2011

Eba! Acabou o primeiro semestre, está tudo OK na escola e agora é tempo de aproveitar as férias com Mammy em São Paulo!

Nestas férias, eu tinha mais alguma coisa que eu queria fazer de todo jeito, que era me encontrar com a Marina, depois de quatro anos que não nos vemos. Nós estudamos juntas até o terceiro ano na escola para brasileiros no Japão, Depois, a Marina mudou-se para outra cidade e começou a frequentar a escola japonesa. Passado algum tempo, ela começou a esquecer o português e os e-mails dela eram só em japonês. Aí ficou difícil para eu entender até que nós paramos de trocar e-mails.

Em janeiro deste ano, eu soube que ela tinha voltado para o Brasil (a mãe da Marina avisou a Mammy) e eu estava bastante ansiosa para ver a Marina de novo, mas a Mammy não se esforçou nem um pouquinho para me levar até a casa dela.

Até que, quando faltavam 2 dias para eu voltar a Maringá, a mãe da Marina veio a nossa casa. Mas veio sozinha.

E a Marina, não veio? Perguntei para a mãe e foi quando ela me abraçou fortemente e disse: “A Marina pegou gripe e está de cama, mas eu vim para pedir uma coisa para você” e me entregou um caderno de capa vermelha.

Esse caderno era o diário em que nós duas escrevíamos até quatro anos atrás. A mãe da Marina esperou que eu escrevesse alguma coisa e depois foi embora, segurando o diário com cuidado.

Naquela noite, ouvi de Mammy a verdade. Voltando ao Brasil, certo dia, a Marina pegou ônibus com sua mãe e foi conversando animadamente pelo caminho em japonês. Nisto, um grupo de jovens começou a debochar com palavras e risadas, que a deixou muito traumatizada. Desse dia em diante, ela vive trancada em casa e não quer sair por nada. É triste, mas muito triste.

Eu preciso fazer alguma coisa pela Marina. Vou orar a Deus por isso. Ele há de me ensinar como fazer. A Marina é minha amiga do coração. Por favor, me ajuda, Pai!

Querido Diário. Te agradeço porque você está sempre perto de mim.

História nº 24 (5) >>

       

© 2015 Laura Honda-Hasegawa

Brasil comunidades dekasegi ficção identidade Nikkeis no Japão trabalhadores estrangeiros
Sobre esta série

Em 1988 li uma notícia sobre decasségui e logo pensei: “Isto pode dar uma boa história”. Mas nem imaginei que eu mesma pudesse ser a autora dessa história...

Em 1990 terminei meu primeiro livro e na cena final a personagem principal Kimiko parte para o Japão como decasségui. Onze anos depois me pediram para escrever um conto e acabei escolhendo o tema “Decasségui”. 

Em 2008 eu também passei pela experiência de ser decasségui, o que me fez indagar: O que é ser decasségui?Onde é o seu lugar?

Eu pude sentir na pele que o decasségui se situa num universo muito complicado.

Através desta série gostaria de, junto com você, refletir sobre estas questões.

Mais informações
About the Author

Nasceu na Capital de São Paulo em 1947. Atuou na área da educação até 2009. Desde então, tem se dedicado exclusivamente à literatura, escrevendo ensaios, contos e romances, tudo sob o ponto de vista nikkei.

Passou a infância ouvindo as histórias infantis do Japão contadas por sua mãe. Na adolescência lia mensalmente a edição de Shojo Kurabu, revista juvenil para meninas importada do Japão. Assistiu a quase todos os filmes de Ozu, desenvolvendo, ao longo da vida, uma grande admiração pela cultura japonesa.

Atualizado em maio de 2023

Explore more stories! Learn more about Nikkei around the world by searching our vast archive. Explore the Journal
Estamos procurando histórias como a sua! Envie o seu artigo, ensaio, narrativa, ou poema para que sejam adicionados ao nosso arquivo contendo histórias nikkeis de todo o mundo. Mais informações
Novo Design do Site Venha dar uma olhada nas novas e empolgantes mudanças no Descubra Nikkei. Veja o que há de novo e o que estará disponível em breve! Mais informações