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História nº 24: Diário da menina que queria ser japonesa (2)

Leia História nº 24 (1) >>

17/2/2010

Primeira vez que vi o carnaval pela TV e hoje, quarta-feira, chega ao fim. Dizem que é a “Quarta-feira de Cinzas”. Perguntei para Batchan por que chamam assim e ela explicou: “Hoje acabou a folia que todo mundo espera durante um ano e amanhã começa a vida, todo mundo pensando já no ano que vem”. Não entendi por que é de cinzas, mas tudo bem, o Brasil é bem diferente do Japão.

Depois de um bom tempo, a Mammy veio passar uns dias em Maringá Chegou no sábado e foi embora hoje cedo. Ela e o papai se separaram. Um ano atrás, logo depois que voltei do Japão, fui morar na casa do papai para ir à escola que ficava perto, mas foram só 4 meses. Naquela época, a Beti vinha todos os dias. E essa Beti é que é a nova esposa do papai. Dizem que esperam um filho. Quer dizer, vou ganhar uma irmãzinha.

Quando eu estava no Japão, a Sofia e o Jun da minha classe e eu também só tinham mãe. A Monikinha e os 2 irmãozinhos moravam com a avozinha. Eu achava isso normal, mas as minhas amigas aqui de Maringá, todas moram com o pai e a mãe. Acho que deve ser muito bom assim.

Não sei por que, mas fiquei triste.

Meu querido Diário,

Boa noite


28/3/2010

Hoje é aniversário da Batchan!

A Batchan, 6 anos atrás, ela se aposentou como professora primária. E agora ela anda muito ocupada todos os dias. De manhã cedinho ela não perde a ginástica na praça do bairro, o Rádio Taisso, e participa de trabalho voluntário em asilos e hospitais. Como ela adora cozinhar, diz que vai abrir uma escola de culinária. Viu só como ela não para?

Sobre a festa de aniversário da Batchan, nós ficamos planejando desde a semana passada. E pensamos: se fizer na casa dela, é capaz de fazer o próprio bolo de aniversário. Se for comemorar num restaurante, onde que seria bom? Pizzaria? Temakeria? Churrascaria? Gelateria? As opiniões se dividiram.

Foi aí que o meu primo Sérgio falou bem alto: “É Karaokê!”.

Todo mundo ficou surpreso, pois o caladão Sérgio tinha falado! E coisa incrível, todo mundo aprovou a ideia e assim ficou decidido.

Estamos agora de saída para a casa do tio Shigeru. Como o karaokê no centro da cidade é bastante apertado e como a casa do titio fica na periferia, sem perigo de perturbar a vizinhança, todo mundo achou a ideia ótima e estamos bastante animados. O aparelho de karaokê foi um primo que pediu emprestado de um amigo. E todo mundo diz que quer me ouvir cantar, mas acho que está havendo um engano aí... Bem, mas se é para homenagear a Batchan, eu posso tentar, né?

Até mais!


29/3/2010

Na hora do recreio, falei para minhas amigas que na festa de aniversário da Batchan tinha karaokê. As amigas chegaram mais para perto e foram falando ao mesmo tempo: “Você sabe cantar Namida Surprise (AKB48), né?” e “E o again da YUI?” e “Rule da Ayu”?

Por causa dessas músicas japonesas, ontem na festa e hoje na escola eu paguei o maior mico! Na festa da Batchan me falavam: “O quê?! Não conhece música japonesa?”, “Você não morava no Japão? Então?!”, “Se não via televisão, fazia o quê?”, “Mas que desperdício!”.

A Batchan é grande fã da Yashiro Aki e dizem que até o penteado dela é igual. Até dez anos atrás, quando o Jitchan era vivo, os dois até participaram de concurso de calouros. Batchan lembrou com saudades. E eu, que nem sei cantar Moshi moshi kame yo kame san yo1, todo mundo riu de mim.

E na escola disseram: “Jéssica, é verdade que você veio do Japão? Não foi de outro planeta, não?

Quem sou eu? Nasci no Japão, mas não sei nada das coisas japonesas, o meu nome é Jéssica Carla Azevedo, 100% brasileiro, mas pela minha cara e pela cor do meu cabelo me chamam de JAPA, então quem sou eu de verdade?

Como eu queria ser japonesa!

Oh, querido Diário! Nada de ficar rindo de mim, hein? Por favor!

História nº 24 (3) >>

Nota:
1. Letra de conhecida cantiga infantil que virou mangá (Usagi to Kame)

 

© 2015 Laura Honda-Hasegawa

Brasil dekasegi ficção Japão Nikkeis no Japão trabalhadores estrangeiros
Sobre esta série

Em 1988 li uma notícia sobre decasségui e logo pensei: “Isto pode dar uma boa história”. Mas nem imaginei que eu mesma pudesse ser a autora dessa história...

Em 1990 terminei meu primeiro livro e na cena final a personagem principal Kimiko parte para o Japão como decasségui. Onze anos depois me pediram para escrever um conto e acabei escolhendo o tema “Decasségui”. 

Em 2008 eu também passei pela experiência de ser decasségui, o que me fez indagar: O que é ser decasségui?Onde é o seu lugar?

Eu pude sentir na pele que o decasségui se situa num universo muito complicado.

Através desta série gostaria de, junto com você, refletir sobre estas questões.

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About the Author

Nasceu na Capital de São Paulo em 1947. Atuou na área da educação até 2009. Desde então, tem se dedicado exclusivamente à literatura, escrevendo ensaios, contos e romances, tudo sob o ponto de vista nikkei.

Passou a infância ouvindo as histórias infantis do Japão contadas por sua mãe. Na adolescência lia mensalmente a edição de Shojo Kurabu, revista juvenil para meninas importada do Japão. Assistiu a quase todos os filmes de Ozu, desenvolvendo, ao longo da vida, uma grande admiração pela cultura japonesa.

Atualizado em maio de 2023

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