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Barbearia japonesa em São Paulo

Atualmente, as barbearias estão em alta em razão da nostalgia. (Foto: Henrique Minatogawa)

 

Os nikkeis, quando vão cortar cabelo no Brasil, costumam ouvir que “cortar cabelo de oriental é difícil”. A explicação é que os fios são muito lisos, ora finos demais, ora grossos demais. Assim, seria difícil fazer penteados diferentes, além de evidenciar erros no corte com mais facilidade.

Para atender esse público, atualmente, existem diversos salões de cabeleireiros especializados em orientais. Oferecem ainda serviços de coloração, manicure e outros serviços estéticos, com o público-alvo majoritariamente formado por mulheres.

É um serviço que envolve alguma periodicidade, ou seja, as pessoas dificilmente vão todos os dias, diferente de uma loja ou um restaurante, em que a frequência tende a ser maior. Assim, a questão da fidelidade ganha relevância especial.

Ainda, diferente do setor de comércio (em que, basicamente, basta escolher e pagar para concluir o negócio), o setor de serviços envolve alguma comunicação. Neste caso, é preciso explicar como se quer o corte,

Obviamente, essa demanda por corte de cabelo por parte dos orientais, mais especificamente dos nikkeis, não é nova. Desde a chegada dos primeiros imigrantes japoneses ao Brasil, o serviço de corte de cabelo e barbearia já era necessário.

A barbearia Yahiro, localizada no bairro da Liberdade, ajuda a ilustrar essa história. Quem conta é Teruo Yahiro, 39 anos, nisei, atual responsável pelo negócio da família, que veio ao Brasil nos primeiros tempos da imigração.

“Depois de alguns anos, em 1950, meu avô decidiu vender a fazenda de café e retornar ao Japão”, conta Teruo. Dos 12 filhos, apenas um, o mais velho, ficou no Brasil. Ele era barbeiro na cidade de Arapongas, estado do Paraná.

“Lá no Japão, minha avó falou: melhor você aprender a profissão do irmão mais velho. Com um pente e uma tesoura, você pode rodar o mundo inteiro que fome não vai passar. Aí meu pai e minha tia aprenderam a profissão em uma escola famosa no Japão. Depois voltaram para o Brasil”. O ano era 1975.

Motohide, pai de Teruo, seguiu para a Liberdade, que já era o bairro que concentrava a comunidade japonesa na cidade. O primeiro foi em um estabelecimento chamado 3B, “porque era bar, bilhar e barbearia”, explica Teruo. Em 1979, Motohide, então, passou a trabalhar com a irmã no local onde ainda hoje é a barbearia Yahiro.

A barbearia Yahiro funciona desde 1979 no bairro da Liberdade, em São Paulo.
(Foto: Henrique Minatogawa)  

Cortar o cabelo em uma barbearia tradicional é uma experiência diferente. Primeiro, aplica-se uma toalha quente nos cabelos para amolecer os fios. Depois, a finalização é feita com navalha com lâminas descartáveis. Para completar, limpeza dos ouvidos e corte dos pelos do nariz – algo comum e necessário para homens a partir de certa idade. Ainda tem uma massagem um pouco mais hardcore – e eficiente – que a praticada em alguns salões de cabeleireiro. O cheiro predominante é da espuma de barbear misturado com o cheiro de vapor de água.

A finalização é feita à moda antiga, com navalha. 
(Foto: Henrique Minatogawa)  

Fiquei admirado, embora não tenha sido exatamente uma surpresa, ao saber que a mobília, cadeiras e o aquecedor de toalhas vieram do Japão, trazidos de navio por Motohide. “Basicamente, a gente manteve a cara do tokoya [barbearia]. Tudo veio de navio com o meu pai. Então tem coisas aqui que são relíquias”, conta Teruo.

Tudo está em muito bom estado de conservação. “A manutenção não é tão complicada, mas a gente tem que cuidar. Antigamente, os produtos eram fabricados para durar muitos anos. Então a manutenção é mínima”, afirma Teruo. Nas cadeiras, da marca Takara-Belmont, eventualmente, é preciso realizar algum reparo no estofado. Como outro exemplo, ele aponta o aquecedor de toalhas, fabricado pela Takagi Riki & Co – “tem uns 70 anos e nunca quebrou”.

As cadeiras foram trazidas do Japão de navio. 
(Foto: Henrique Minatogawa)  
Aquecedor de toalhas, com décadas em funcionamento, nunca quebrou. 
(Foto: Henrique Minatogawa)    

Atualmente, em São Paulo, as barbearias estilo retrô (ou vintage) estão na moda. Novos salões são decorados sob a influência dos antigos, enquanto os originais recebem novos clientes.

“Muitos procuram barbearia também por um lado sentimental porque, quando pequeno, o jichan [avô] ou o próprio pai ia cortar cabelo, fazer a barba e tudo mais. Daí pode querer relembrar aqueles momentos nostálgicos de ir à barbearia quando criança”, calcula Teruo.

Talvez esses que procuram reviver os velhos tempos na barbearia também lembrem a época em que não eram eles que definiam o corte do próprio cabelo. Hoje em dia, as crianças já têm opinião formada, mas alguns anos atrás, eram os pais quem determinavam como seria o serviço.

“Houve uma época em que começaram a vir os filhos dos okyakusan [clientes] do meu pai, os antigões, e eles queriam que os filhos cortassem o cabelo curto, sempre tinha que ser curto. Então também eu tive que me adequar para não chatear o garoto, para ele continuar vindo aqui; eu tinha que fazer um meio-termo. Com o passar do tempo, tive que ‘enrolar’ o pai de alguma forma para que não ficasse tão curto e pelo menos manter o corte na moda para o garoto também. Foi um momento bacana”, lembra Teruo.

Hoje, o salão é frequentado por jovens, tanto nikkeis como de outras ascendências. Para acompanhar os cortes mais modernos, Teruo conta que costuma assistir às novelas japonesas para ver como é o estilo dos atores atuais.


Gerações

Em uma barbearia em funcionamento há tanto tempo, é natural que os clientes sejam fiéis. A barbearia Yahiro já alcançou a terceira geração. “Agora, minha esposa e eu estamos em uma fase de começar a ir ao casamento dos filhos dos okyakusan. Depois, é maternidade. De preferência, a gente fica mais feliz se nascer menino, pois dá continuidade ao meu trabalho [risos]”, conta Teruo.

Entretanto, há um outro lado, um pouco mais triste. “Depois, é a ida da primeira geração. Tem muito okyakusan falecendo, da época do meu pai. Que eram okyakusan há 40, 45 anos… Essa é a parte mais triste. A gente aprende muita coisa com eles. Eu aprendo muita coisa com eles aqui na barbearia”, conta Teruo. “Meu pai trabalhou como barbeiro dentro do navio; cortava o cabelo dos tripulantes e dos viajantes. Um deles, até algum tempo atrás, vinha cortar. Porém, faz um tempo que não vem…”

Em algumas ocasiões excepcionais, Teruo e sua esposa prestaram serviço para clientes hospitalizados. “Em geral, a gente ia ao hospital cortar o cabelo e fazer a barba do okyakusan em um momento em que houve uma melhora. Porém, geralmente, eles acabavam falecendo pouco tempo depois”, lamenta. Com toda a tristeza resultante, eles decidiram não fazer mais serviços assim.


Ajudando o pai

“Eu vinha ajudar meu pai desde pequeno, desde os 10 anos. Eu varria o salão, lavava os panos... Nas férias escolares, sempre estava aqui”, lembra Teruo. Era meados dos anos 80. “Foi a época em que a Liberdade estava no auge da ‘japonesada’. Peguei uma época em que eles tinham um poder aquisitivo melhor, muitos trabalhavam no Mercadão, no Ceasa [grandes centros comerciais de hortifruti]. Lembro que as caixinhas também eram bem gordas”.

Teruo aponta também uma diferença do perfil dos clientes. “Era a época do nihonjin mais durão. Eram clientes que não ligavam para beleza; tendo um profissional que trabalhasse bem, para eles, era o suficiente”.

Nesse ponto, ainda hoje há alguns resquícios de uma postura mais conservadora, como a desaprovação da barba (na moda atualmente no Brasl). “Já me chamaram a atenção porque eu estava deixando a barba crescer. ‘O que é essa sujeira embaixo do seu queixo?’ ou ‘que é esse negócio na sua orelha aí?’[brinco]. Tinha muito disso”, lembra Teruo.

Foi mais ou menos assim que Teruo aprendeu a profissão. “Aprendi com meu pai tudo no sistema antigo, então era tudo na base da bronca. Teve um episódio de uma senhora que trabalhava aqui, que aprendeu com meu pai também. Eu lembro que ela entrava no banheiro depois de uma bronca. Meia hora depois, ela saía com nariz vermelho. É um tipo de ensinamento bem rígido, de nihonjin mesmo”.

Teruo conta que aprendeu a profissão na base das broncas do pai. 
(Foto: Henrique Minatogawa)  

A situação não mudava fora da barbearia. “Em casa, era até pior. Tanto que hoje, os três filhos sabem falar nihongo justamente pelas broncas que meu pai dava em casa. Em casa, pelo menos, não podia falar português”.

O fato de saber falar japonês é muito importante na barbearia, pois muitos dos clientes são japoneses, que trabalham nas filiais brasileiras de empresas japonesas. “As empresas fazem rodízio, de quatro em quatro anos. Quando os atuais vão embora, a próxima turma já sabe onde cortar cabelo. Isso já vem desde a época em que meu pai começou”, conta Teruo.

Teruo e sua esposa têm duas filhas. Apesar da distância de tempo, ele se inspira na própria educação. “São gerações diferentes. Como hoje é tudo fácil, tem muita informação, é preciso ter muito cuidado para educar. Pelo menos, esse lado tradicional que meu pai passou ajuda muito hoje para educar o pessoal desta geração”.


Continuidade

Teruo conta que não foi pressionado a continuar o negócio da família. “Como eu vinha ajudar meu pai desde garoto, para mim foi tranquilo. Nenhuma pressão. Meu pai, claro, queria que um dos três filhos desse continuidade. Meus irmãos também tentaram, mas não continuaram. Eu sou o filho do meio”.

Porém, para o futuro, ele não está otimista no momento. “Infelizmente, acho que isso tem dias contados para acabar. Hoje vejo que é muito difícil ensinar nos mesmos moldes que meu pai ensinou. Os jovens de hoje não conseguem mais se adequar a um sistema de ensinamento antigo”, lamenta.

Teruo menciona exemplos de outras áreas. “No Japão, a pessoa aprende lá de baixo. Para  chegar a sushiman, por exemplo, tem que lavar muito prato, tem que limpar muito peixe. Muitas coisas que meu pai mandava fazer, se eu fosse tentar moldar um profissional da mesma forma, os jovens de hoje não aceitam. Eu ficava sentado, com a tesoura na mão, treinando. Como cansava, o olho ia fechando. Meu pai, quietinho, pegava a toalha e jogava com tudo na cara. Se fizer isso hoje, seria processado. Por isso, tende a acabar”.

Teruo começou a trabalhar regularmente na barbearia aos 20 anos. “As broncas serviam para sempre melhorar, sempre acertar o corte. Eu era muito novo, respondia para ele. Aos poucos, fui entendendo. Meu pai também, no Japão, pelo que ele falava, sofreu bastante na mão do mestre. Tanto que quando ele falava no mestre, começava a chorar”.

“Creio que é nesse estilo que ele queria que eu aprendesse. Hoje, depois que eu perdi o velho, as coisas que mais fazem falta são aquelas broncas. Tudo que eu sou, tudo que eu tenho, é graças ao mestre que eu tive.”

 

© 2015 Henrique Minatogawa

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About the Author

Henrique Minatogawa é jornalista e fotógrafo, brasileiro, nipo-descendente de terceira geração. Sua família veio das províncias de Okinawa, Nagasaki e Nara. Em 2007, foi bolsista Kenpi Kenshu pela província de Nara. No Brasil, trabalha na cobertura de diversos eventos relacionados à cultura oriental. (Foto: Henrique Minatogawa)

Atualizado em julho de 2020

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