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Diferenças culturais – Verão

Tivemos neste ano o pior verão dos últimos 70 anos com temperaturas atingindo 40ºC. Pela cidade viam-se pessoas com o rosto vermelho, suando em bicas, ofegantes, andando com movimentos lentos. Mas eu, que nunca gostei de calor, passei esses dias terríveis até que com bastante disposição. Isto se deve ao fato de eu ter experimentado um dia o verão japonês, quando aprendi muitas coisas. Assim, nessa estação do ano é que as diferenças culturais entre o Brasil e o Japão se tornam mais evidentes.

Há 42 anos fui bolsista no Japão. A maior preocupação dos meus pais era ver a sua única filha enfrentando o rigoroso inverno japonês. Mas, graças a Deus, o frio não foi problema para mim, até que chegou o verão... Relembrando, aquele verão – o primeiro passado no Japão – foi muito significativo para mim e me ensinou coisas importantes que eu ponho em prática até hoje.

Como naquela época não fazia um calor tão intenso como hoje em São Paulo, achei o verão japonês muito quente e abafado. Então, a dona do pensionato e outras pessoas amigas disseram que eu deveria repor as energias com uma alimentação adequada. Foi assim que fiquei conhecendo alimentos dos quais nunca tinha ouvido falar, mas que acabei conhecendo e gostando: edamame (soja fresca cozida), suco de tomate, kare raisu (arroz ao curry), yakitori (espetinho de frango com molho agridoce), unagidon (arroz com enguia). E acompanhando o edamame havia o Calpis; também experimentei o tokoroten (gelatina de alga marinha temperada com vinagre e shoyu). A princípio, fiquei surpresa ao saber que os japoneses davam especial atenção à alimentação nos dias mais quentes, pois no Brasil não havia esse costume. Mas vivendo no Japão eu percebi o quanto era importante esse cuidado e, a partir daí, tenho procurado escolher alimentos adequados para repor as energias durante o verão.

Aqui as pessoas geralmente tomam sucos e refrigerantes e fazem refeições leves nessa época do ano e, como sou adepta do costume japonês, já passei por situações curiosas. Certa vez, como eu tinha que sair muito cedo de casa, tomei um café da manhã reforçado do tipo brunch. Ao contar sobre a minha primeira refeição do dia para uma colega, ela ficou espantada: “Mas como você consegue comer num dia tão quente assim?”. E uma nikkei que estava junto acrescentou: “Igual japonês, né?”. A verdade é que a grande maioria dos nikkeis pensa que, logo pela manhã, todos os japoneses comem arroz e tomam a tradicional sopa de “missô” como se fosse almoço.

Outro dia, eu convidei minha amiga para vir comer “karê” em casa e ela estranhou: “O quê?Isso não se come em dia de frio?”. Eu queria responder que não, que o primeiro “karê” da minha vida eu comi no Japão em pleno verão, mas acabei mudando o cardápio daquele dia.

Mais uma experiência que remete ao tempo em que estava no Japão, 42 anos atrás. Fiquei sabendo o que era haramaki, uma faixa larga de tecido que se usa em volta da cintura. A dona do pensionato me ensinou que seria bom usar haramaki mesmo em dias quentes, como uma maneira de não resfriar a região da barriga. Retornando ao Brasil, tratei de falar dos benefícios do haramaki ao meu pai – ele que costumava ficar sentado bem na frente do ventilador nos dias quentes. Mas meu esforço de nada adiantou, pois o calorento do meu pai não aderiu a esse costume, dizendo: “Fico com mais calor ainda”.

Novas surpresas me aguardavam quando fui pela primeira a uma praia japonesa. Tanto as crianças como os adultos usavam camiseta ou uma blusa de tecido leve por cima do maiô ou do calção de banho e levavam junto chapéu ou sombrinha. Naquele instante logo me veio à lembrança algo que minha mãe dizia em japonês toda vez que eu saía de casa sem levar a sombrinha. Um velho ditado popular que falava das vantagens de se ter uma pele clara, pois ela serve para esconder sete defeitos! É isso, agora estou entendendo! Nunca é tarde para começar! E foi assim que, depois de voltar do Japão, comecei a me proteger do sol (na época ainda não havia filtro solar).

Aconteceu quando fui a uma famosa cidade turística nas férias de verão. Ao entrar na loja de suvenir, a balconista logo veio falando: “A cliente não está com calor?Não é melhor tirar esse casaquinho?” Fiquei um tanto incomodada por alguém que nem conhecia falar comigo daquele jeito. E ela continuou com um sorriso: “Aqui é a terra do sol! Tem que aproveitar ficando bronzeada”. Mais uma diferença cultural que senti na pele...

Todos os anos, quando chega o verão, eu gosto de escolher um modelo de roupa nas revistas de moldes do Japão. São vestidos amplos e jumpers que eu mesma confecciono. Um tipo de roupa que nunca entrou em moda aqui no Brasil, mas que para mim é um item indispensável para passar o verão com conforto.

Assim, usando vestidos de algodão 100% e levando sempre o chapéu ou a sombrinha com película protetora contra raios UV, eu tenho enfrentado os dias de muito calor com disposição.

Ocorre que no Brasil as mulheres em geral usam calças compridas justas, e vestidos amplos e compridos é raríssimo de se ver. Quando eu tinha uns 40 e poucos anos, estava fazendo compras usando o meu vestido predileto, quando uma criança atrás de mim perguntou para a mãe: “Quem é ela?” e logo chegou aos meus ouvidos o seguinte: “Deve ser alguma vovó”. Confesso que foi um choque, mas até que entendi o ponto de vista dessa mãe.

Certa ocasião, uma senhora nikkei me reconheceu dizendo: “Eu me lembro da primeira vez que nos encontramos, a senhora estava usando um chapéu branco!”. Outra vez foi quando estávamos reunidos ao ar livre, sob o sol do meio-dia e eu de sombrinha aberta. Foi então que as mulheres à volta me perguntaram: “A senhora anda sempre de sombrinha?”

Eu digo que estou satisfeita. Tanto a experiência de vida no Japão, como as informações que tenho através de revistas japonesas e programas da NHK, têm sido úteis e valiosas para melhorar cada vez mais o meu estilo de vida.

E para o próximo verão, estou pensando em criar uma belíssima Gurin Kaaten no terraço de casa, que é como se chama a cortina de folhagens que se cultiva do lado de fora da janela para se ter uma sensação refrescante nos dias quentes. Será provavelmente a única “Cortina Verde” em toda a cidade.     

 

© 2014 Laura Honda-Hasegawa

Brasil cultura Japão
Sobre esta série

Quando criança, eu falava misturando o japonês e o português. Entrando na escola fundamental, fui aprendendo naturalmente a distinguir o que era uma língua e outra e, escrever em português se tornou uma atividade prazerosa. Hoje, 60 anos passados, escrever tanto em português como em japonês é a maior das minhas alegrias. Através desta série, espero poder contar histórias sobre os mais variados temas. Que isto possa chegar até vocês, como se fosse o meu cumprimento de uma refrescante manhã. 

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About the Author

Nasceu na Capital de São Paulo em 1947. Atuou na área da educação até 2009. Desde então, tem se dedicado exclusivamente à literatura, escrevendo ensaios, contos e romances, tudo sob o ponto de vista nikkei.

Passou a infância ouvindo as histórias infantis do Japão contadas por sua mãe. Na adolescência lia mensalmente a edição de Shojo Kurabu, revista juvenil para meninas importada do Japão. Assistiu a quase todos os filmes de Ozu, desenvolvendo, ao longo da vida, uma grande admiração pela cultura japonesa.

Atualizado em maio de 2023

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