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Do diário do meu pai (1) - Aqueles Dias Eu...

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Naquele tempo meu pai trabalhava como protético na cidade de Santos. Era solteiro e estava com 28 anos. Mais tarde, mesmo não sendo formado trabalhou irregularmente como dentista prático no quarto de uma pensão ou nos fundos da sua casa. Ele deixou registrado num velho diário, intercalando momentos de alegria e tristeza com passagens pitorescas de delícias da vida de solteiro em Santos, das emoções dos jogos no cassino e cita várias pessoas que o ajudaram a superar os momentos mais difíceis. Seis meses antes do início da guerra do Pacífico meu pai, por apresentação de um conterrâneo de Kumamoto, Japão, chamado Kunio Jimpo, conheceu Toshiko da cidade de Jacareí, que mais tarde viria a ser minha mãe. Pelo diário é possível reconstituir esse período de alegria, angústia, incerteza e muita ansiedade que os meus pais viveram. Talvez o mais importante da vida deles.

Foto de 1938 da família do Sr. Guisuke Yoshihiro a quem meu pai acostumava se aconselhar e a quem deveu muitos favores. Na fila de trás à esquerda o pai do meu colega Roberto Sadao Yoshihiro.

Transcrevo a seguir um trecho da página em que meu pai descreve o início da guerra, ocorrido às 18h do dia 07 de Dezembro de 1941 (horário do Brasil).

“O Império do Japão estourou o estopim da guerra contra os Estados Unidos e a Inglaterra. Passei com os ouvidos grudados no rádio das 19h00 às 23h00, ouvindo o início da guerra da nossa pátria. Já às 22h30, o rádio informava que a nossa brava força imperial fez Filipinas e Hawai virarem um palco de fogo. Cresce o sentimento anti-nipônico no Brasil e nós, japoneses sentimo-nos cada vez mais pressionados. Nos últimos dias tenho ido todas as noites à casa do Sr. Gisuke Yoshihiro1 para ouvir ao rádio. Tenho conversado muito com ele e a esposa, sobre a guerra e as possíveis conseqüências sobre nós. Fico preocupado quanto à discriminação que podemos sofrer caso o Brasil entre nesta guerra”. 

O casamento dos meus pais não teve festa nem cerimônia. A minha mãe que morava na cidade de Jacareí precisou de um salvo conduto, - exigido a todos os japoneses e alemães, - para ir a Santos e casar-se com o meu pai. Do casamento nasceu a minha irmã Yukiko, mais tarde batizada com o nome de Dalva. O diário prossegue....

“Dia sete de Julho de 1943. - De súbito, sem que ninguém esperasse, - o governo brasileiro decretou a retirada imediata de japoneses e alemães de Santos. Às 15h:00 eu recebi a ordem para a minha retirada. As poucas horas que restaram desse dia foram consumidas para conversar com outros colegas e ir ao Consulado da Espanha para adquirir moeda de país neutro. Isso porque a moeda brasileira poderia sofrer grande desvalorização com a vitória dos países do Eixo. Custei a me desvencilhar de um guarda militar que me interpelou querendo explicações. Às 10 horas da manhã do dia seguinte, nosso grupo de 700 pessoas partiu de trem para São Paulo. Chegamos às 15h00. A hospedaria já estava cheia de gente de levas anteriores. Conversei com alguns deles antes de sermos levados sob forte vigilância para preencher as formalidades necessárias para o trâmite. Passamos essa noite na Hospedaria do Imigrante na Mooca. Fiquei com pena da nossa filha Yukiko de oito meses, mas ela estava bem disposta.

O dia seguinte foi de intensa ocupação. Fomos tratados como verdadeiros prisioneiros. Todos demonstravam muita irritação. Tive uma discussão com o fiscal por causa da minha bagagem. Levei uma bronca e me arrependi. Não havia outro jeito senão conformar-me. Pensei, - suportemos isso por enquanto, até sermos recompensados depois que a guerra acabar. Nesse mesmo dia fomos levados de caminhão até à Estação Sorocabana, sempre escoltados e sob forte vigilância militar. A ira ardia e crescia dentro de mim, mas, tive que me conter, não há nada que possa ser feito a não ser aguardar.”

Mais de dois anos se passaram desse episódio até o término da guerra. A página que descreve o dia do fim da guerra, - 16/08/1945 – contém um texto tão absurdo que chega a ser inacreditável de tão desapontador. E foi escrita por meu pai quando ele estava com trinta anos e no seu peito fervia um incontido amor à sua pátria. Dá para imaginar o sentimento com que as próximas linhas foram escritas. Está no diário;  

“Grande vitória! A cada momento está sendo repercutida para o mundo a tão esperada vitória do nosso império japonês. Nosso império nunca traiu nossa expectativa de grande vitória no encerramento da Guerra do Pacífico. Cem milhões unidos num só espírito do povo de Yamato nesta grande vitória do nosso povo. Uma grande vitória na batalha mundial” 

Meu pai acreditava na vitória do Japão na Guerra do Pacífico, e era Diretor da revista Hikari editada pelos “Vitoristas”.

Na minha infância, eu morava no norte do Estado do Paraná, onde estudei a língua japonesa. Ali, - como nas demais regiões dos estados de São Paulo e do Paraná, - a comunidade japonesa estava dividida em duas facções. A dos “vitoristas” e a dos “derrotistas”.

Meu pai trabalhava naquela época como dentista pratico ambulante visitando os núcleos das colônias japonesas. Exercia também a função de Diretor para o Paraná da revista “Hikari”, editada pelos vitoristas. Hoje não temos nenhum exemplar dessa revista na nossa casa e nem sei direito de como era o seu conteúdo, mas tenho curiosidade de ler para compreender melhor aquela época tumultuada.

Isso porque percebi que com o passar do tempo, foi crescendo a minha disposição em buscar uma resposta para a pergunta “o que foi a Guerra do Pacífico na Segunda Guerra Mundial?”.

As reais causas dessa guerra, as circunstâncias em que ela ocorreu e as conseqüências para cada um de nós. Sinto a necessidade de transmitir para as próximas gerações, a essência do que realmente ocorreu, de forma correta. Freqüentemente esses assuntos são tratados com ênfase no ponto de vista dos vencedores, e quase sempre as publicações literárias apresentam como culpado pela guerra apenas o lado derrotado. A correta compreensão da história permite conhecer melhor os vários caminhos trilhados pelos povos para que os erros do passado não sejam repetidos no futuro. 

Na escola onde estudei japonês era freqüentada por muitos filhos de “vitoristas”. Eu sou o primeiro da direita na fila da frente. Minha irmã é a sexta da segunda fila. No centro o professor Yamaoka. A foto é de 1950.

Nota

1. O Sr. Gisuke Yoshihiro (1882~1978), natural de Yamaguti-ken, Tokuyama-gun, por mais um inexplicável acaso de coincidência da história foi avô do meu colega Roberto Sadao Yoshihiro na empresa NEC do Brasil e trabalhamos juntos mesmo depois de deixarmos a empresa. O Sr. Gisuke Yoshihiro, nascido no ano quatorze da era Meiji, fez uma aventura histórica quando tinha 19 anos viajando clandestinamente num navio cargueiro para ir aos Estados Unidos. Foi descoberto quando o navio estava na costa da África, mas conseguiu o seu intento desembarcando em Los Angeles no ano de 1901, onde permaneceu trabalhando até os 34 anos, retornando ao Japão em 1917, durante a Primeira Guerra Mundial. Casou-se e retornou ao Brasil em 1926 no navio Buenos Aires Maru. Foi um empresário de sucesso no ramo de industrialização de pescado em Santos no Brasil. Segundo consta no diário de meu pai Suemitsu, ele foi seu grande mentor e conselheiro.

* * *

Adendo: Quando escrevi essa matéria oito anos atrás, eu ainda não possuía um suficiente entendimento sobre a Guerra do Pacífico. Passei a interessar-me pelo assunto, principalmente pelo enfoque dos estudiosos do Japão. Recorri a várias publicações em japonês de documentos revelados recentemente, sessenta e tantos anos após o término da guerra. Foram muito úteis os livros enviados por meus amigos do Japão, como a “História da era Showa” de Kazutoshi Hando. Tive a oportunidade de tomar consciência do papel da mídia na formação da opinião pública pró-militarismo, a angústia do Imperador amparado pela constituição anterior à guerra e a manipulação desse poder por parte dos militares do exército, as conseqüências que se seguiram ao Incidente da Manchúria e seus desdobramentos após a materialização do avanço sobre à China e ao sudoeste asiático. As notícias da perda de quatro dos maiores navios de combate do Japão (da ordem de 64 mil t) na batalha de Midway não tinham sido reveladas ao povo japonês.

As notícias que o meu pai ouvia pelo rádio e acreditava como verdadeiras, apesar de manipuladas são para mim uma insuportável incógnita e me partem o coração quando penso neles. E com a presença das forças aliadas em território japonês após a rendição, o militarismo imperialista foi banido no Japão.  O livro de leitura que eu estudei a gramática da língua japonesa na minha infância era de antes da guerra. Começava com o texto “SAITA SAITA SAKURAGA SAITA, (floresceu, floresceu, floresceu a cerejeira)”. Continha histórias infantis de Urashima Taro, Momotaro, Issunboushi (lenda versão do Pequeno Polegar), Hanasakajijii e trechos da mitologia dos deuses, como o Imperador Jinmu, a Deusa Amaterasu, assim como trechos sobre a Guerra da China e da Russia. É uma pena e dói-me o coração, que nada disso conste mais nos livros didáticos das escolas japonesas do pós-guerra.

Residência do Sr. Guisuke Yoshihiro onde meu pai ouvia a transmissão de rádio de Tókyo na Guerra do Pacífico.

* Este texto foi escrito em 12-01-2005 em japonês, e publicado no jornal “São Paulo Shimbun”, foi revisado e traduzido pelo autor em 22-01-2013.

© 2004 Hidemitsu Miyamura

Sobre esta série

Publicou em 2005 um livro de crônicas em japonês, com o título de Kagirinaku Tookatta Deai (限りなく遠かった出会い), coletâneas de matérias publicadas na coluna “Dokusha no room”,  no jornal São Paulo Shimbun. No livro constam episódios extraídos de um diário do seu pai com a jornada da sua vida. Falecido em 1995 com 81 anos, seu pai veio ao Brasil como imigrante em 1934 com 19 anos. Nesta série serão apresentados alguns episódios extraídos do livro.

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About the Author

Hidemitsu Miyamura, nascido em 01/01/1944 em Paraguaçu Paulista. Estudou japonês na infância em Apucarana no norte do Estado do Paraná. É engenheiro mecânico formado na Universidade Federal do Paraná. Trabalhou na empresa NEC do Brasil por 34 anos, retirando-se em 2001. Casado com a médica Alice, é pai de Douglas Hidehiro e Érica Hiromi. É autor do livro Kagiri Naku Tookatta Deai (限りなく遠かった出会い) publicado em 2005. Escreve crônicas no São Paulo Shimbun.

Atualizado em janeiro de 2013

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