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História nº 12 (Parte I): Crianças sem paradeiro certo

Depois de trabalhar durante 25 anos como professora primária, Sayaka aposentou-se e achou que, finalmente, podia se dar ao luxo de ter momentos de lazer e descanso.

Acontece que o seu marido ainda estava na ativa e queria continuar trabalhando por mais 10 anos. Então ela não achou certo ficar na vida boa e começou a procurar algo para fazer.

Foi exatamente nessa época que ela soube que as filhas do seu irmão mais velho estavam se preparando para retornar ao Japão pela segunda vez como decasséguis. Ambas ficaram trabalhando durante dois anos, voltaram ao Brasil, mas não conseguiram emprego e, assim, decidiram retornar ao Japão, achando que lá a vida seria bem melhor.

Sayaka não conseguia entender como duas jovens, com curso superior completo, não tinham emprego no seu próprio país, tendo de ir para fora. E pensando em mil coisas, uma ideia lhe ocorreu num relampejo: “Eu que estou com 52, pode ser que tenha chance também, não?”. Imediatamente foi conversar com as sobrinhas e também pediu a opinião da família.

O marido concordou, mas com a condição de que ela retornasse depois de um ano. O único filho deu o maior apoio. Em troca, os dois fizeram uma longa lista de presentes que eles queriam do Japão.

Assim, Sayaka foi para o Japão. Era a primeira vez, mas acostumou-se à nova vida mais depressa do que imaginava. Trabalhava numa fábrica de instrumentos de precisão no setor de controle de qualidade. Morava num conjunto habitacional onde viviam muitos brasileiros, distante da fábrica uns 20 minutos a pé.

Passou meio ano e chegou o verão. Certo domingo de manhã, Sayaka e mais duas colegas foram ao parque, onde muitas crianças brincavam.

- Ai que inveja que eu tenho vendo as crianças. Num dia tão quente e abafado como hoje, elas brincam com tanta disposição!

Sua colega Lena, que ainda estava na casa dos vinte, na mesma hora disse:

- Isto é porque a Sayaka já tem certa idade, não é? É diferente.

Kazumi, mais ou menos da mesma idade de Sayaka, se intrometeu:

- Vem cá, você tem marido, né? Então por que veio para tão longe trabalhar? Se fosse como eu, sozinha no mundo, dava pra entender...

Foi nesse momento que um menino começou a chorar alto no escorregador. Na mesma hora, uma mulher parecendo ser a mãe dele levantou-se do banco e começou a repreender as duas meninas que estavam perto do garotinho. A menina maior saiu rápido de perto, mas a menorzinha nem se moveu – continuou firme olhando para ela.  A mulher ficou mais irada ainda e levantou a mão em direção à criança.

Não suportando mais ver a cena, Sayaka correu para junto da menininha, puxou-a pela mão e curvou-se na frente da mulher.

- Fez o meu filho cair no choro, mas que criança de maus modos é a sua, não?!

Sayaka continuou de cabeça baixa, sem dizer uma palavra. Em seguida, a menininha falou: “Vamo bincá?

Sayaka levou um susto. “Esta menina fala português!”

O garotinho, já refeito do choro, aproximou-se da mãe com cara de pidão. E a mulher não teve outro jeito se não atendê-lo, afastando-se do lugar, ao mesmo tempo em que olhava para trás e resmungava algo.

A menininha tinha aproximadamente quatro anos e disse chamar-se Tata. Segurou firme a mão de Sayaka e começou a conversar. Mas Sayaka não estava entendendo nada, porque o que a menininha falava não era português e também não era japonês.  

Olhou várias vezes ao redor para ver se achava alguém que parecesse ser a mãe ou a responsável dela, mas não havia sinal.

Nisto, a menininha exclamou como se tivesse descoberto algo. E com olhar de alegria, ficou aguardando a jovem que vinha a passos largos em sua direção.

Chegando bem em frente de Sayaka, ela abaixou a cabeça e ficou assim, sem dizer nada. Sayaka pensou: “Deve ser brasileira”. Porque o decasségui que não sabe conversar em japonês costuma curvar a cabeça seguidamente sem emitir palavra. Ela mesma fazia isto na frente de um japonês. Então perguntou: “Você que é a mãe dela?”.

Ao ouvir palavras em português, a jovem mostrou-se mais aliviada: “Que bom, pensei que ela tivesse se perdido e estava procurando até agora! A Talita logo some de vista...”.

- Por acaso, você levou junto para ir às compras?

- Não, ela estava na escolinha quando de repente nós demos pela falta. Essa deve ser a terceira vez. É que estamos com falta de funcionárias, aí se descuidar, a Talita foge mesmo. Vamos embora, né?

A jovem verificou se estava tudo em ordem e notou que a criança estava sem um dos sapatos e ordenou que fosse procurar. A meninha obedeceu, indo para perto do escorregador, achando o pé e calçando-o.

- Desculpe perguntar, mas onde fica a escolinha?

- Bem, você indo reto por aqui, vai encontrar uma padaria de telhado vermelho. Indo mais para os fundos, tem um lugar com muitas árvores e passando daí, dá para ver. Era uma antiga fábrica e tem uma placa onde está escrito “Criança Feliz”. É uma pequena escola para crianças brasileiras. Bem, temos que ir.

A jovem despediu-se, segurando firme a mão da menininha e foi caminhando em direção à rua. Nisto, a menininha soltou-se e foi correndo na direção de Sayaka e deu-lhe um abraço apertado.

Sayaka se emocionou com esse gesto espontâneo e a criança voltou correndo para onde estava a jovem.

- Tchau, Talita! Que bom seria se a gente pudesse se encontrar algum dia...

Passados alguns meses, Sayaka ficou com vontade de ir visitar a escolinha “Criança Feliz”.

Como ela nem sabia da existência de escolas brasileiras no Japão, estava na maior expectativa. Achava que elas seriam bem mais organizadas do que as escolas que tinha conhecido em sua vida de professora no Brasil.

Parte II >>

© 2013 Laura Honda-Hasegawa

Brasil dekasegi ficção Nikkeis no Japão trabalhadores estrangeiros
Sobre esta série

Em 1988 li uma notícia sobre decasségui e logo pensei: “Isto pode dar uma boa história”. Mas nem imaginei que eu mesma pudesse ser a autora dessa história...

Em 1990 terminei meu primeiro livro e na cena final a personagem principal Kimiko parte para o Japão como decasségui. Onze anos depois me pediram para escrever um conto e acabei escolhendo o tema “Decasségui”. 

Em 2008 eu também passei pela experiência de ser decasségui, o que me fez indagar: O que é ser decasségui?Onde é o seu lugar?

Eu pude sentir na pele que o decasségui se situa num universo muito complicado.

Através desta série gostaria de, junto com você, refletir sobre estas questões.

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About the Author

Nasceu na Capital de São Paulo em 1947. Atuou na área da educação até 2009. Desde então, tem se dedicado exclusivamente à literatura, escrevendo ensaios, contos e romances, tudo sob o ponto de vista nikkei.

Passou a infância ouvindo as histórias infantis do Japão contadas por sua mãe. Na adolescência lia mensalmente a edição de Shojo Kurabu, revista juvenil para meninas importada do Japão. Assistiu a quase todos os filmes de Ozu, desenvolvendo, ao longo da vida, uma grande admiração pela cultura japonesa.

Atualizado em maio de 2023

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