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História nº 8: Triste acontecimento de carnaval

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Sou uma vovó de 70 anos de idade, nikkei de segunda geração. Desde jovem eu nunca me interessei por carnaval. Achava que era mais um divertimento para brasileiros e, como eu sempre tive consciência que não era “brasileira”, nunca liguei para isso. Mas foi naquela época que as associações nikkeis começaram a realizar os seus bailes de carnaval que os jovens descendentes passaram a frequentar e a se divertir. Eu mesma fui a um deles junto com amigas, mas não me lembro de nada em especial.

Casei-me aos 24 anos e tive 4 filhos. A minha filha mais velha formou-se professora e lecionava numa escola pública que ficava perto de uma favela, mas como estava cada vez mais perigoso ir até lá, além de o salário ser baixo, ela acabou saindo do emprego. Nessa época, o assunto entre os nikkeis era ir trabalhar no Japão, então, não demorou muito, ela também resolveu ser decasségui. Quando a outra filha, que estava cursando o ensino médio, soube da decisão da irmã, disse categoricamente: “Eu também vou!”.

Eu trabalhava como cabeleireira e contava muito com a ajuda dessa outra filha nos afazeres de casa. A Karin – é o nome dela - estava encarregada de preparar o café da manhã reforçado para o meu filho mais velho que estava começando no seu primeiro emprego e de preparar as refeições do meu caçula que estava em idade de crescimento. Então fiquei muito indecisa. É que mais ou menos um ano antes, o meu marido havia tido derrame cerebral e estava fazendo reabilitação. Se deixasse a Karin ir para o Japão, eu teria de diminuir meu trabalho no salão e isto afetaria diretamente no orçamento de casa.

A Karin estava me ajudando desde quando tinha 10 anos de idade. Por isso, ficava fazendo as lições da escola tarde da noite e nos fins de semana nem saía com as amigas para passear ou ir ao cinema. Apesar disso, ela nunca reclamou de nada, fazendo direitinho o serviço de casa. E justo quando, pela primeira vez na vida, ela manifestou sua vontade, eu não quis atendê-la.

Karin ficou tão desanimada que a irmã mais velha procurou consolá-la: “Vem cá, falta pouco para você terminar o colegial, não é? Então, por que não termina primeiro? Fica tranquila, eu te espero no Japão!”.

“Se é por causa da minha comida, fica tranquila que já sei fazer gohan e feijão também!” – disse o caçula George.

Meu marido, que estava calado só ouvindo, falou: “A Karin tem se esforçado até hoje. Pode ir, que aos poucos vou voltar a trabalhar. E veja tudo que tem no Japão por mim também!”.

E assim, com o apoio da família, a Karin ficou mais 8 meses no Brasil, concluiu o ensino médio e partiu para o Japão.

A minha filha mais velha inicialmente trabalhara numa fábrica de peças elétricas na província de Ibaraki, mas com a chegada da irmã, saiu desse emprego e as duas foram morar em Yamanashi, onde trabalharam em hotéis, só que em locais diferentes. Quando eu releio as cartas que elas me mandavam ou vejo as fotos dessa época, a emoção toma conta de mim. Como as duas estavam animadas, cheias de vida! A Karin, que desde pequena foi tímida, parecia uma outra pessoa. Quando mostrei a foto para as senhoras da vizinhança, perguntaram: “Quem é esta?”. A Karin tinha se tornado uma bela jovem.

Passado um tempo, a minha filha mais velha se casou. O noivo, um nikkei morando no Japão havia 15 anos, possuía uma casa na cidade de Kofu e foi lá que o casamento se realizou. E pela primeira vez na vida viajei para o exterior, com o coração pulando de alegria, para participar da cerimônia. Fiquei apenas 12 dias, mas graças a Deus foram momentos inesquecíveis junto de minhas filhas. Pensando bem, para Karin aqueles foram os poucos e últimos momentos de plena felicidade e eu fico com muita pena.

Dois anos e meio depois, dia 21 de fevereiro, na semana do carnaval, a Karin voltou ao Brasil de férias. As ruas estavam enfeitadas de muitas cores e nas lojas havia uma profusão de fantasias e acessórios próprios para o carnaval. Uma linda menina moreninha ganhou a sua fantasia de baiana e ali mesmo na loja começou a sambar. “Eu voltei mesmo para o Brasil!” – exclamou a Karin e eu achei muita graça.

Tínhamos organizado uma festinha de boas-vindas naquela mesma noite. Éramos a nossa família e seis dos nossos parentes. Na verdade, o número de parentes era bem maior, mas resolvemos dividir, porque todo mundo que tinha parente trabalhando no Japão precisava tomar muito cuidado. O motivo era porque corria um “boato” na sociedade brasileira de que os decasséguis voltavam do Japão trazendo muito dinheiro. Então evitávamos falar que “alguém” estaria voltando do Japão nem atendíamos telefonemas de pessoas que não conhecíamos. Todo cuidado era pouco.

Minha irmã que morava na capital e duas sobrinhas haviam acabado de chegar, quando tocou a campainha. “É o tio Takê!” e a Karin saiu correndo.

Nisto a porta se abriu com estrondo como se alguém tivesse dado um chute. Entrou um homem de máscara preta seguido de um jovem. Esse jovem tinha o rosto descoberto e via-se que ainda era menor de idade. O homem da máscara nos ameaçou com uma pistola e, olhando tudo à volta, acabou nos trancando no banheiro. 

Os homens puseram tudo que viam em uma mala que havia em casa, carregaram TV, computador e eletrodomésticos e, quando pensamos que tinham ido embora, a porta do banheiro se abriu a o mais novo gritou: “Me dá a chave do carro que está na frente”.

Minha sobrinha foi para junto da cadeira onde estava sua bolsa, quando o homem da máscara puxou-a fortemente pelo braço, ordenando: “Você vem junto”. Imediatamente o meu marido, que tem dificuldade para se locomover, levantou a sua bengala para impedir, no que foi violentamente arremessado para trás, caindo no chão e ficando imóvel. A Karin, que estava tremendo e segurando a minha mão com força, deu um grito e correu para junto do pai e ficou ali, em total desespero.

Mas quando a minha sobrinha entregou a chave, o homem da máscara mudou de ideia e, em vez dela, pegou o meu cunhado como refém. E foram embora. 

De madrugada, meu cunhado retornou, contando que foi obrigado a retirar dinheiro do caixa eletrônico e que depois havia passado na delegacia para registrar boletim de ocorrência.

Depois disso, o pavor tomou conta de todos nós e às pressas deixamos a casa onde eu morei desde que me casei e nos mudamos para o bairro onde estamos agora. Para a vizinhança nós viemos do interior e em nenhum momento falo que tenho filha trabalhando no Japão como decasségui. O meu marido não consegue esquecer a casa espaçosa que tínhamos e agora passa os dias no pequeno quarto, sem ânimo para nada. 

A Karin voltou para o Japão um mês depois, mas não conseguiu se concentrar no trabalho, ficou doente e foi internada. No trabalho teve desavenças com colegas e entrou em licença para tratamento. Foi quando ela foi diagnosticada que estava com depressão.

Bem nessa época, a minha filha mais velha que estava grávida do segundo filho preferiu ter o bebê no Brasil e veio trazendo a Karin de volta.

A vida da Karin mudou por completo. Quando está bem, ela sai para passear, vai às compras, faz serviço de casa, até prepara pratos japoneses muito bem. Mas nos dias em que não se sente bem, ela se tranca no quarto, sequer abre a janela. Se eu digo uma palavra, ela reage bruscamente, então eu me calo.

E hoje é um dia desses. Deixei a comida sobre a mesinha perto da porta, também os doces e frutas que ela gosta. Costumo deixar jornais e revistas, mas hoje não fiz isso. Porque hoje é Terça-feira Gorda, o último dia do carnaval. O dia daquele acontecimento terrível foi também na Terça-feira Gorda, nove anos atrás. 

Lá de fora vêm os sons do grupo que toca nos eventos do bairro. Neste ano, como sempre, os aficionados do carnaval de todo o Brasil estão se divertindo nas ruas. Pelo noticiário de TV eu vejo que o mundo está girando e as pessoas seguem cada qual a sua vida. Se tudo está como sempre esteve, por que só para a minha Karin não é permitido viver a vida de antes? Por que sua vida mudou tanto? Se nada daquilo tivesse acontecido, ela teria terminado o curso de esteticista no Japão e estaria trabalhando no Brasil.

Eu, que desde antes não gostava de carnaval, agora acho que é uma festa do demônio, que tem o poder de ludibriar as pessoas com toda maldade e força. Sobre o assalto que sofremos nove anos atrás, na época, uma vizinha me disse que viu os dois criminosos em frente do portão de casa. Assim que eles a viram, o mais jovem deu-lhe “Boa noite” com respeito e o da máscara, tão simpático, fez com que ela se lembrasse dos filmes do Zorro que assistia na matinê quando criança. Jamais ela suspeitaria que eles fossem nos roubar. 

Por isso, todos os anos, quando chega esta época, o coração dói, mais do que de costume. Pois não sei até quando a Karin vai ficar nessa situação instável. Confesso que fiquei tão traumatizada quanto ela, mas não posso esmorecer. Meu dever como mãe é estar sempre ao seu lado, amparando-a. É o caminho de dor e sofrimento que tenho que percorrer.    

© 2013 Laura Honda-Hasegawa

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Sobre esta série

Em 1988 li uma notícia sobre decasségui e logo pensei: “Isto pode dar uma boa história”. Mas nem imaginei que eu mesma pudesse ser a autora dessa história...

Em 1990 terminei meu primeiro livro e na cena final a personagem principal Kimiko parte para o Japão como decasségui. Onze anos depois me pediram para escrever um conto e acabei escolhendo o tema “Decasségui”. 

Em 2008 eu também passei pela experiência de ser decasségui, o que me fez indagar: O que é ser decasségui?Onde é o seu lugar?

Eu pude sentir na pele que o decasségui se situa num universo muito complicado.

Através desta série gostaria de, junto com você, refletir sobre estas questões.

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About the Author

Nasceu na Capital de São Paulo em 1947. Atuou na área da educação até 2009. Desde então, tem se dedicado exclusivamente à literatura, escrevendo ensaios, contos e romances, tudo sob o ponto de vista nikkei.

Passou a infância ouvindo as histórias infantis do Japão contadas por sua mãe. Na adolescência lia mensalmente a edição de Shojo Kurabu, revista juvenil para meninas importada do Japão. Assistiu a quase todos os filmes de Ozu, desenvolvendo, ao longo da vida, uma grande admiração pela cultura japonesa.

Atualizado em maio de 2023

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