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Eu gosto é da feira!

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Não é parque de diversões, mas é muito legal. Não é cinema, mas podemos ver coisas interessantes. Não é um circo, mas é colorido, cheio de ritmo e tem muitas atrações. Para mim a feira é um lugar muito interessante.

A partir do século XVII, as feiras começaram a surgir na cidade de São Paulo. Em 1914 elas foram oficializadas e, a partir de 1948, cada bairro passou a ter a sua feira uma vez na semana.

Eu sou de 1947, portanto, quando eu nasci, já havia a feira. E como minha família morava exatamente na rua onde se realizava a feira, desde muito pequena, eu via a feira como se fosse uma parte do quintal de casa. Num determinado dia da semana, por volta das quatro da manhã, lá fora ia ficando barulhento. As mercadorias eram descarregadas do caminhão e os feirantes arrumavam tudo sobre a banca. Como o meu quarto ficava virado para a rua, os preparativos para a feira chegavam aos meus ouvidos muito antes da hora de acordar.   

Os primeiros fregueses começavam a chegar lá pelas sete horas e, depois das onze, o alvoroço era tamanho que parecia uma grande festa. Eu ia junto com minha mãe e ficava parada olhando em volta maravilhada. “Não fique parada olhando, venha me ajudar”, dizia minha mãe, meio impaciente.

E o pregão dos vendedores chamava muito a minha atenção. Voltando para casa, eu costumava imitar a fala, dando ritmo à frase: “Batatinhaaaa! Batatinha marela graúda!”.

E mesmo hoje eu não fico alheia ao que os feirantes anunciam. Eles não são locutores profissionais nem políticos em campanha, mas os feirantes são bons para falar. Também são brincalhões. “Moça bonita não paga...”, assim grita um e da banca em frente se ouve “não paga mas não leva”.

Minhas andanças pelas feiras já têm um bom tempo, mas até hoje nunca ouvi um feirante nikkei falar brincadeiras. Na sua grande maioria, trabalham calados e compenetrados, ao passo que o brasileiro, do jeito como é expansivo, trabalha e conversa ao mesmo tempo. Seja comentando uma partida de futebol, falando mal de político ou da sogra, contando sobre sua própria desventura amorosa, os assuntos não têm fim. Outro dia, porém, ouvi uma nikkei da banca de verduras dizendo em voz alta: “Quer saber? Pode não parecer, mas já teve gente que quis se atirar da ponte por minha causa”. Eu estava na banca do lado escolhendo pepinos e levei um susto! Ela está na casa dos 60, é uma senhora das mais comuns. Para ser brincadeira é muita ousadia da parte dela e, se for verdade, eu acho que não é algo para se dizer a pessoas estranhas, pensei.

A feira também serve como ponto de encontro. Quando duas ou três pessoas idosas se encontram, o assunto é doença. Se forem nikkeis, a conversa é sobre decasségui. “Meu marido também foi trabalhar de decasségui. Se ele mandar bastante dinheiro pra nós, não precisa mais voltar, não!”, “Pobrezinho, o filho não se acostumou no Japão e acabou voltando depois de meio ano”, “A Fulana de Tal sabe falar japonês, então foi efetivada na firma”, etc.

Antigamente, as profissões mais frequentes entre os nikkeis era ser dono de lavanderia (na época, tinturaria) e feirante. Como os nikkeis eram em grande número na feira, costumava-se falar japonês. Minha mãe era nascida no Brasil, mas o seu forte era o japonês. Na feira ela conversava em japonês a maior parte do tempo. Então, quando eu tinha uns 4 anos de idade, falei para uma senhora brasileira que morava na vizinhança, misturando português com japonês: “Laura, kyo feira itta. Milho katta. Ninjin katta. Pastel mo katta”. A senhora pareceu um pouco confusa e disse “Penso que entendi, mas não entendi nada” e passou a mão na minha cabeça.

Quase todos que vendiam verduras e legumes eram nikkeis. Acelga japonesa, espinafre japonês, goboh, nabo, abóbora japonesa. “Que que é isto?” As donas de casa brasileiras perguntavam curiosas. Goboh em português é bardana, mas por não ser tão familiar aos brasileiros, até hoje o goboh continua sendo goboh, conhecido apenas pelos nikkeis. Por outro lado, a abóbora japonesa, por ser mais doce e mais encorpada que a similar brasileira, caiu no gosto dos brasileiros e acabou sendo chamada de “cabotchan”.
     
Há coisas que começaram a ser vendidas mais recentemente, como é o caso da verdura tchinguensai e do legume nigagori. Este último é conhecido no Japão como go-ya ou nigauri, mas aqui é nigagori. Andei perguntando a muitas pessoas, mas parece que ninguém no Brasil sabe que é go-ya.     

Foi graças aos produtores e feirantes nikkeis que as verduras e legumes de origem japonesa tornaram-se acessíveis. Mas essa situação começou a mudar na segunda metade da década de 80, quando ficou cada vez mais difícil ter esses produtos à mão.

Foi nessa época que chegou ao auge o movimento decasségui, com um número crescente de nikkeis indo trabalhar no Japão. Como consequência, diminuiu em muito o número de feirantes nikkeis. “A família toda foi para o Japão”, era o que se ouvia com frequência e os fregueses assíduos, desolados, ficaram com a sensação de terem sido abandonados. Mais de 20 anos depois, o número de feirantes nikkeis não é o mesmo de antigamente. E os nikkeis que permaneceram estão sempre inovando, com o intuito de atrair os consumidores. Produtos como tofu, cogumelo fresco, até conservas como o fukujinzuke aparecem nas bancas.

E falando em feira não poderia deixar de falar dos pastéis. Feira e pastel, ambos formam uma dupla sensacional. Acho que 99% dos brasileiros são da mesma opinião. O prazer de ir à feira é comer os pastéis feitos na hora. Sequinhos e crocantes por fora e suculentos por dentro, saborear aquela delícia que se espalha na boca é a felicidade completa! Se for acompanhado de um copo de caldo de cana ou água de coco é o máximo.

Principalmente, se for final de semana, é comum a família se reunir debaixo do toldo e servir-se dos pastéis valendo como um almoço. Para escrever esta matéria, resolvi convidar meus amigos de infância. Estiveram comigo exatamente 10 pessoas.

Meus amigos de infância que colaboraram nesta matéria

Mas eu sempre tive uma dúvida com respeito aos pastéis. Se a grande maioria dos donos de pastelaria da cidade e banca de pastéis da feira é descendente de japonês, por que não se acham pastéis iguais aos nossos no Japão? Estive no Japão em três ocasiões e nunca vi pastéis sendo vendidos. Mas agora achei a resposta.

Dizem que o pastel brasileiro teve origem no “rolinho de primavera”. Os imigrantes chineses adaptaram a receita da tradicional iguaria chinesa usando ingredientes brasileiros e assim nasceu o pastel. Em 1890, surgiram as primeiras pensões e, perto dali, os imigrantes chineses abriram as primeiras pastelarias.

Mas quem tornou os pastéis conhecidos dos brasileiros foram os imigrantes japoneses. Durante a Segunda Guerra Mundial, o Japão fez parte do Pacto Tripartite, uma ampla aliança entre os países do Eixo (Alemanha, Itália e Japão). Devido a isto, os japoneses passaram a sofrer discriminação no Brasil. Para escapar dessa situação, os imigrantes japoneses se passaram por chineses, entrando no negócio que eles haviam começado.   

O empreendimento teve sucesso, pois os pastéis foram ficando cada vez mais populares e até hoje estão em primeiro lugar no ranking dos salgadinhos preferidos do povo. E acho que vão continuar por muito tempo como sendo o maior atrativo nas feiras.

As cidades se desenvolveram, surgiram aqui e ali supermercados e lojas de conveniência, mas eu sou saudosista, gosto mesmo é da feira! 

© 2012 Laura Honda-Hasegawa

Brasil Feira Havaí Nipo-americanos Nikkei Estados Unidos da América
About the Author

Nasceu na Capital de São Paulo em 1947. Atuou na área da educação até 2009. Desde então, tem se dedicado exclusivamente à literatura, escrevendo ensaios, contos e romances, tudo sob o ponto de vista nikkei.

Passou a infância ouvindo as histórias infantis do Japão contadas por sua mãe. Na adolescência lia mensalmente a edição de Shojo Kurabu, revista juvenil para meninas importada do Japão. Assistiu a quase todos os filmes de Ozu, desenvolvendo, ao longo da vida, uma grande admiração pela cultura japonesa.

Atualizado em maio de 2023

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