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Capítulo 16: Sou de Sampa

Nasci na Maternidade São Paulo, localizada à rua Frei Caneca, no coração de São Paulo.

Aos 2 anos em frente de casa

Quando criancinha, minha mãe me levava para passear nos Jardins do Ipiranga. De vestidinho cor-de-rosa e sombrinha japonesa, as pessoas me viam e diziam: Uma bonequinha japonesa que anda!

Ir à  Casa Nakaya na praça João Mendes era um divertimento! Naquela época havia o bonde chamado “camarão” e viajar nele era uma aventura e tanto! Além disso, essa loja de artigos importados do Japão parecia uma casa da nobreza devido ao ambiente requintado. Eu ficava deslumbrada diante de tantos artigos de bom gosto.

A primeira vez que saí de São Paulo foi quando viajei para o Paraná. Eu tinha doze anos e fui a Londrina, onde moravam meus avós maternos.

Fomos minha mãe e eu no carro de meu tio, numa viagem longa de cerca de dez horas. Quando lá chegamos, já era tarde da noite. Minha avó, que eu não conhecia, me abraçou com os olhos chorosos. Os tios e as tias foram aparecendo um após outro na varanda semiescura, recebendo-nos calorosamente.

Como era pleno verão e por ter sido uma viagem exaustiva, peguei logo no sono, mas, de repente, as luzes do quarto se acenderam e comecei a ouvir vozes de crianças, muitas crianças falando em voz baixa. “Ah, devem ser os meus primos e primas”, pensei e, quando me dei conta, o som das vozes foi aumentando cada vez mais e eu senti que estava sendo observada por todos que se postaram em volta de minha cama.

Tímida que só eu, de vergonha, fiquei com a cabeça debaixo do cobertor e fingi que dormia profundamente. Deve ter sido por isso que dormi tão bem e, quando acordei na manhã seguinte, ouvi vozes animadas vindas da cozinha.

Troquei de roupa e fui caminhando pelo corredor, quando uma prima me viu e disse: “Aqui tem que andar descalço e quando for entrar na cozinha precisa pôr zori. E me levou para a soleira onde chinelos de palha e sandálias se espalhavam por todos os lados.

A família de meus avós era o que se chama de “A grande família”. Vovô e vovó, meu tio com a esposa e seis filhos, dois tios e uma tia, ainda solteiros, além de duas primas. Ao todo quinze pessoas! Em casa éramos papai, mamãe e eu. Portanto, foi uma aventura passar duas semanas no meio de tanta gente.

Primeiro ano no Grupo Escolar Sao Jose

Um dia, minhas primas pediram para eu mostrar a sola dos meus pés. A princípio atônita, mostrei e elas chegando mais perto, apalparam levemente e ficaram admiradas: “Como é macio!” Como todas elas tinham sido criadas na fazenda, correndo descalças sobre aquela terra vermelha, a sola de seus pés era áspera e dura. Então, ficamos comparando os nossos pés e demos muitas risadas.

Quando passei para o curso ginasial, fui ficando cada vez mais consciente de que eu era uma paulistana. Na classe havia muitos alunos descendentes de japoneses vindos do interior. Ficavam morando em casa de parentes e, nas férias escolares, todos retornavam às cidades de origem. São Paulo naquela época era conhecida como sendo a “Cidade da garoa” e, mesmo no verão, o sol não era tão forte. Eu sempre tive a pele clara e quando ia para a praia o máximo era ficar vermelha, jamais ficava bronzeada. Mas as colegas que retornavam das férias no interior vinham com um bronzeado tão bonito que eu invejava! Até o modo de se vestir delas parecia mais atraente: para combinar com a pele bronzeada, seus vestidos e sandálias tinham a cara do verão, tudo colorido e muito gracioso. “Como é melhor o calor”, eu pensava e fui ficando com vontade de um dia me mudar para um lugar mais quente.

Um bom tempo depois, eu fui morar em uma cidade bem mais quente que São Paulo. Adaptei-me à vida lá e passaram-se seis anos quando, de repente, uma ideia me passou pela cabeça.

Devido ao aquecimento global, os dias estavam ficando insuportáveis, então pensei na minha vida dez anos para frente. “Será que vai dar para uma idosa viver num lugar tão quente? Eu quero voltar à terra natal, onde pelo menos é mais fresco que aqui.”

E depois de sete anos voltei a São Paulo. Ao contrário da grande maioria dos habitantes, eu sou uma paulistana que, em plena metrópole, vive uma vida sossegada, sem pressa alguma, no meu ritmo.

Jardins do Ipiranga

Viaduto do Cha

P.S.:  “Sampa” é o título da música que o cantor e compositor brasileiro Caetano Veloso fez, tendo como tema a cidade de São Paulo

© 2011 Laura Honda-Hasegawa

Sobre esta série

Meus avós vieram do Japão há mais ou menos 100 anos. Eu nasci no Brasil. Por isso, quero servir de “ponte” entre o Brasil e o Japão. O Japão que está arraigado no meu coração é um tesouro que quero guardar para sempre.  E foi movida por esse sentimento profundo que escrevi a presente série.  (Bom dia em japonês é Ohayo)

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About the Author

Nasceu na Capital de São Paulo em 1947. Atuou na área da educação até 2009. Desde então, tem se dedicado exclusivamente à literatura, escrevendo ensaios, contos e romances, tudo sob o ponto de vista nikkei.

Passou a infância ouvindo as histórias infantis do Japão contadas por sua mãe. Na adolescência lia mensalmente a edição de Shojo Kurabu, revista juvenil para meninas importada do Japão. Assistiu a quase todos os filmes de Ozu, desenvolvendo, ao longo da vida, uma grande admiração pela cultura japonesa.

Atualizado em maio de 2023

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