Descubra Nikkei

https://www.discovernikkei.org/pt/journal/2008/7/25/voices-of-chicago/

Aprendendo a Cair

Como o retorno ao lar após uma longa viagem, pisar no tatame no dojô é um dos momentos mais relaxantes pelo qual aguardo ardentemente depois de um longo dia de trabalho. Uma empolgação enorme vai tomando conta de mim enquanto eu coloco o meu gi, entro no dojô, tiro os meus zori (sandalhas), piso no colchão de palha, e me curvo respeitosamente ao entrar. Naquele momento, é como se todos os meus problemas do dia tivessem desaparecido, e o que resta é uma mente clara, calma e pronta para aprender.

Quando começamos o aquecimento, uma fonte de energia passa pelas minhas veias à medida que o meu corpo vai se preparando para o uchi komi (treinamento repetitivo de entradas). Normalmente, esta parte do treino consome tanta energia que fico sem fôlego quando chega a hora do randori (treino livre), mas os rounds de três minutos passam voando e antes de me dar conta, o treino já acabou. Nós então ficamos em fila virados para o(s) sensei (instrutor[es]) que dão as ordens: “Seiza. Mokuso. Ya-mei. Sensei ni rei. Shomen. Rei”. Quando eu saio da posição de ajoelhamento e deixo o colchão, sinto uma mistura de exaustão e rejuvenecimento. Fico feliz de estar em casa.

Clube Tenri Dojo

Quando eu era criança, o judô foi a minha salvação. Quando eu treinava, eu esquecia dos valentões da escola, das notas baixas e tarefas de casa. Eu adorava ficar no colchão de palha, e aprendi a lutar judô bem rapidamente. Imitar as técnicas ensinadas pelos meus sensei era fácil. O difícil era aplicar essas técnicas no randori ou numa competição. Como qualquer outro esporte competitivo, sair derrotado de uma luta nunca é divertido, apesar de que existem duas maneiras de perder. Você pode se sentir amargo e frustrado por não ter ganho, ou pode aprender com os seus erros e praticar para melhorar. Tem uma história que meu amigo Jarrod costumava contar. Por vários anos consecutivos durante a sua juventude, o pai de Jarrod participou de um montão de torneios e foi derrotado em todas as lutas. Alguns veriam isso como um sinal para desistir, mas seu pai continuou a competir e logo começou a sair vencedor. Eu vejo duas lições nesta história. A primeira: Nunca desista. A segunda: O que importa não é ganhar ou perder, e sim o que você aprende com a luta para a próxima vez. Lições como esta também me ajudaram a lidar com os valentões da escola e as notas baixas, apesar de que eu ainda não gosto de fazer as tarefas de casa.

O judô também me manteve conectada à minha herança cultural japonesa. No tatame, eu aprendi a contar [em japonês] e um pouco do vocabulário. Fora do tatame, havia comemorações e apresentações em vários eventos por toda Chicago. Eu tenho boas lembranças de bater mochi no pilão na cerimônia anual Kagami Biraki (cerimônia de abertura do primeiro treinamento do Ano Novo) como também das apresentações no Jardim Botânico. O fato de eu fazer parte de uma academia de judô também me facilitou muito fazer amizades. Eu acho que é porque ninguém no tatame é o melhor em tudo. Cada um de nós tem seus pontos fortes e fracos, e nos apoiamos uns nos outros para o nosso aprimoramento. Como no judô existe essa constante “troca”, as amizades entre os judocas podem se tornar bastante íntimas; eu posso afirmar que algumas das minhas amizades mais longas e profundas são aquelas com pessoas que conheci através do judô.

O judô tem um significado enorme para mim, e eu devo tudo isso à minha mãe. Como ela é uma judoca, ela estava a par das vantagens para mim e minha irmã de praticar um esporte que também representava uma comunidade unida. Ela colocou minha irmã, Stephanie, e eu no judô quando tínhamos, respectivamente, cinco e oito anos, e ela era a nossa maior apoiadora e treinadora em todos os nossos torneios. Quando eu estava com onze anos, minha mãe me ajudou a treinar para as Olimpíadas Juvenis. Todas as manhãs naquele verão, ela corria uns onze quilômetros comigo. Para falar a verdade, na maioria das vezes ela tinha que me arrastar quase que o percurso inteiro porque eu era preguiçosa, teimosa e não tinha nenhuma motivação. Um mês antes do torneio, ela me enviou para um campo de judô, e apesar de eu não ter ganho nenhuma medalha, eu competi em algumas das melhores lutas da minha vida. Aquele verão todo foi uma experiência que eu nunca vou esquecer.

Como eu, minha mãe fazia parte de uma academia de judô quando estava na faculdade. Nesta foto ela está com seus amigos do judô.

Eu até hoje me lembro da primeira vez que conheci os amigos do judô da minha mãe, Doug e Dean, fazendo churrasco de frango com molho teriyaki durante o Festival de Ginza no templo Midwest Buddhist na Cidade Velha de Chicago. Quando eu penso naquele dia, eu me lembro claramente do meu primeiro encontro com o Doug – o ar pesado com a fumaça dos frangos assando na churrasqueira, o cheiro do molho shoyu ao fogo. Era um dia quente de agosto, mas as pessoas estavam agrupadas em filas e em mesas para saborear um dos melhores churrascos com molho teriyaki que eu já comi. Eu me lembro do sorriso do Doug e de seu “alô” animado enquanto eu estava com água na boca esperando pelo enorme pedaço de frango servido com arroz branco e salada de couve. Naquela época, a única coisa que eu sabia sobre esse homem era que ele estava encarregado de preparar a galinha que eu estava prestes a devorar para que ela pudessse repousar sossegadamente na minha barriga. Um mês depois, ele se tornou o meu sensei quando deu a mim e à minha irmã nossas primeiras lições em como cair. Após aquela primeira noite de treino, eu estava apaixonada.

Eu pratico judô já faz mais da metade da minha vida. Recentemente, depois de ficar adiando por um tempo, eu finalmente aceitei a promoção para shodan (faixa preta 1º grau). Quando era criança, eu via a faixa preta como um símbolo de experiência máxima – que ao me tornar faixa preta eu poderia dominar os maiores segredos do judô. No entanto, o único segredo para o sucesso no judô é algo que aprendi quando ainda era faixa branca. Faça o treinamento e pratique com todo o afinco e com todo o coração. Se o lar é onde está o seu coração, então o meu é encontrado onde quer que o tatame esteja coberto de judocas suados e dando duro, e com a minha mãe, se não em cima do tatame comigo, então me treinando logo ao lado do colchão.

Eu com meus amigos do Clube de Judô de Illinois

Nota:
Eu comecei a praticar judô em 1993 na Academia de Judô Tohkon em Chicago. Dois anos mais tarde, me juntei ao Tenri Judo Dojo, situado em Des Plaines. Atualmente, eu tomo parte em treinamentos, quando possível, nas duas academias. Quando eu estava cursando a Universide de Illinois em Urbana-Champaign, eu praticava no Clube Illini Judo.

* Este artigo foi publicado originalmente em Voices of Chicago pela Sociedade Histórica Nipo-Americana de Chicago.

© 2008 Chicago Japanese American Historical Society

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Sobre esta série

Os artigos dessa série foram originalmente publicados em “Vozes de Chicago (Voices of Chicago)”, o jornal online da Chicago Japanese American Historical Society, que é uma organização participante do Descubra Nikkei desde dezembro de 2004.

“Voices of Chicago” é uma coleção de narrativas em primeira pessoa sobre as experiências de pessoas de descendência japonesa que moram em Chicago. A comunidade é composta por três ondas de imigração e seus descendentes: a primeira, cerca de 300 pessoas, chegou a Chicago mais ou menos na época do Columbian Exposition em 1899. O segundo e maior grupo é descendente de 30.000 pessoas que vieram diretamente para Chicago a partir dos campos de concentração após a Segunda Guerra Mundial. Chamados de "reassentados", eles criaram uma comunidade construída em torno de organizações de serviços sociais, igrejas budistas e cristãs e pequenas empresas. O terceiro grupo, mais recente, é de cidadãos japoneses que vieram para Chicago, com início na década de 1980, como artistas e estudantes, e [ali] permaneceram. Um quarto grupo, não-imigrante, é de executivos japoneses e suas famílias que vivem em Chicago por longos períodos, às vezes permanentemente.

Chicago tem sido sempre um lugar onde as pessoas podem recriar a si mesmas e onde diversas comunidades étnicas vivem e trabalham juntas. O “Voices of Chicago” conta histórias de membros de cada um desses quatro grupos e como eles se encaixam no mosaico de uma grande cidade.

Visite o site da Chicago Japanese American Historical Society >> 

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About the Author

Natalie Ume Liverant, uma nipo-americana de terceira geração, se formou em antropologia na Universidade de Illinois in 2007. Ela atualmente trabalha no Programa de Serviços Públicos de Arqueologia e Arquitetura, uma empresa sem fins lucrativos da universidade, como técnica em campo e laboratório. Natalie começou a aprender judô aos oito anos e atualmente é shodan (faixa preta 1º grau). Ela mora em Schaumburg, no estado de Illinois, com sua mãe e irmã.

Atualizado em julho de 2008

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