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Capítulo 6 Formação e Desenvolvimento do Bairro Oriental (1) – O Nascimento do Cine Niterói da Bunkyô

Ao descer da estação Liberdade da linha norte-sul do metrô de São Paulo, saímos numa esquina cheia de lojas e mercados que vendem produtos e comidas japonesas, chinesas e coreanas. É a Praça da Liberdade, centro do Bairro Oriental. (foto 6-1) Indo rumo sul daí, há a Rua Galvão Bueno e à noite a rua é iluminada pelo néon das lojas e as lanternas vermelhas de Suzuran. O Bairro Oriental, que já foi considerado o maior bairro japonês fora do Japão, fica localizado na Liberdade, quase no centro da cidade de São Paulo, e é a área de comércio e turismo. A partir da praça Liberdade, ela se expande até a Rua São Joaquim, passando pela Rua da Glória e a Rua Galvão Bueno1. (ver mapas 1 e 2)

Mapa 1(Clique para aumentar)

Mapa 2 (Clique para aumentar)

Um número considerável de nikkeis da área já estava concentrada na atual área do Bairro Oriental desde antes da Segunda Guerra. Em especial, como as instituições educacionais nikkeis e alojamentos, além de lojas foram se desenvolvendo gradualmente ali, pais que tinham filhos em idade escolar começaram a se interessar pela área. Como falei no capítulo anterior, em 1942, após a ordem de retirada, os moradores nikkeis da área da Liberdade, em especial o Bairro do Conde, foram forçados a se deslocar para o subúrbio de São Paulo ou para o interior do estado. Entretanto, após a Guerra, algumas pessoas voltaram rapidamente para esta área. Além disso, nesta mesma área da Liberdade, excetuando-se o Bairro do Conde, houve também pessoas que se redeslocaram para a Rua Galvão Bueno e a São Joaquim, entre outras.

Na década de 1930, o centro do bairro japonês passou da Rua Conde de Salzedas para a Rua Conselheiro Furtado, como havia mencionado antes, mas uma das razões para os comerciantes nikkeis se mudarem da Rua Conde de Salzedas, com a qual estavam acostumados, indo para o oeste foram as ladeiras íngremes e as enchentes que decorriam delas.

Passando pela Ladeira Santa preguiçosamente

As ladeiras nas redondezas da Rua Conde de Salzedas eram íngremes, o bastante para gerar um período de migração deste tipo, sendo evidente que eles consideravam inconveniente subir e descer por estas ladeiras. 

Volto a dizer, mas na Praça da Liberdade, da área do Bairro Oriental atual, a faixa entre a Rua Galvão Bueno, e São Joaquim, já se localizavam, desde antes da Guerra, diversas instituições educacionais nikkeis, como a escola primária Taisho, e o Seishu Gijuku (Colégio particular Seishu), e o Nippaku Saihô Jogakkô (curso prático de costura nipo-brasileiro), entre outros, a poucos minutos a pé do Bairro do Conde. Havia assim uma grande movimentação de nikkeis e, da mesma forma, a região era muito conhecida pelo interesse que despertava entre os nikkeis.

Apesar disso, a Rua Galvão Bueno, que agora tem trânsito incessante de veículos e pessoas e que brilha à noite com a luz de néon, tinha, até a década de 1950, fileiras de árvores nos dois lados da rua, sendo uma rua tranqüila, ao ponto de ser a adjetivarem de “escura mesmo de dia”. Ainda, o tráfego de carros era pequeno e as crianças podiam brincar de chuta-lata, esconde-esconde e pique-pega. A praça da Liberdade era um parque, onde havia um pequeno morro artificial no centro, e uma estátua de bronze do cônsul Diego Antônio Feijó, cônsul no período imperial do Brasil.

Photo 6-1: Libertade Plaza (Photo by author 2005)

O ponto mais marcante para que esta área se transformasse no novo bairro japonês no lugar do bairro do Conde foi indubitavelmente a abertura do Cine Niterói, em 23 de julho de 1953. O especulador de grãos Yoshikazu Tanaka o construiu como sendo o primeiro cinema no Brasil especializado em filmes japoneses. Construído em um lugar pouco abaixo da Rua Galvão Bueno, descendo da praça da Liberdade (onde fica atualmente a ponte Osaka), possuía área de 1500m². Tinha cinco andares e um subsolo, sendo que o Cine Niterói, no térreo, tinha capacidade para 1500 pessoas. No segundo piso havia restaurante, salão e hotel, sendo a maior instalação recreativa multiuso da comunidade nikkei (Foto 6-2). No livro Colônia Geinôshi (História da Arte e Entretenimento na Colônia Nipo-Brasileira, 1986), o surgimento do Cine Niterói é descrito como se vê abaixo:

Na Rua Galvão Bueno, que na época era perfilada por árvores velhas e pouco iluminada, inesperadamente foi concluído grande palácio branco de cinco andares, uma visão magnífica, nunca antes vista por alguém da época. (p. 265).

Era como se fosse o período de maior prosperidade para o cinema mundial no Pós-Guerra e o cinema japonês também seguia este fluxo. Em 1952, Rashômon, do diretor Akira Kurosawa foi premiado no Grand Prix de cinema de Veneza e, em 1953, o diretor Kosaburô Yoshimura recebeu o prêmio de melhor fotografia no festival de Cannes com seu Genji Monogatari, sendo o princípio da Era de Ouro para o mundo cinematográfico japonês.

Foto 6-2: Edifício Niterói, na frente à esquerda, Pode se ver a placa do cinema Niterói.

Seguindo o Cine Niterói, em julho de 1954, foi inaugurado outro cinema especializado em filmes japoneses, próximo ao cruzamento entre a Av. Liberdade e a São Joaquim, o Nanbei Gekijo (posteriormente Cine Tóquio). Além disso, em 1959, o rival de Tanaka, Kimiyasu Hirata, inaugurou o Cine Nippon, (com capacidade para 1600 pessoas), começando também as atividades do Nikkatsu. O Niterói, no momento da inauguração, exibia obras de empresas como a Daiei, Tôhô, Shôchiku, Shintôhô e da Nikkatsu mas, após alguns anos, passou a trabalhar exclusivamente com a Tôei. O Nippon trabalhava com a Shôchiku, o Jóia com a Tôhô, o Cine Nikkatsu com a Nikkatsu e, no ápice da Era de Ouro do cinema japonês, nesta área os 4 cinemas especializados em filmes japoneses disputavam a hegemonia local.

Os nikkeis que moravam no Brasil tinham um grande sentimento de depressão, decorrente do clima brutal da disputa criada entre os grupos de Makegumi2 e Kachigumi3, estavam famintos por diversão entraram “em êxtase” e cercaram o Niterói. Nos jornais, fala-se das grandes filas e da quantidade de expectadores. No Colônia Geinoshi, falava-se assim da mudança da Rua Galvão Bueno de uma rua de moradia pacata para um próspero bairro japonês:

Na Rua Galvão Bueno, tem-se um pouco a impressão de que se voltou ao Japão. De modo geral, mais de metade dos pedestres é japonês e a placas das lojas dos dois lados da rua estão em Kanji e Kana, caracteres japoneses. (...) Há na frente do Cine Niterói um cartaz com Yujiro Ishihara, segurando uma pistola, Kouji Tsuruta vestido de Yakuza, além de vários outros cartazes chamando a atenção das pessoas na rua. Sobre o Hotel Niterói, cujos funcionários e hóspedes são todos japoneses. 

Entretanto, a Rua Galvão Bueno, entre o período de antes a depois da Segunda Guerra Mundial, tinha moradias construídas há mais de um século e tinha apenas um bar na esquina e duas ou três mercearias.

Nos bons e velhos tempos, ao entardecer, pessoas de aparência agradável punham o rosto para fora da janela e ficavam observando lentamente as pessoas passando pela rua. Sob as grandes árvores da rua, se viam namorados trocando palavras de amor, mas agora não se vê uma única árvore. O nascimento do Cine Niterói proporcionou a mudança visível de rua habitacional para região comercial. (pp. 270-271).

Em abril de 1964, na parte inferior da ladeira da Rua São Joaquim, no cruzamento com a Rua Galvão Bueno, foi construído o prédio da São Paulo Bunka Kyôkai (Sociedade Paulista de Cultura Japonesa), que gerou posteriormente a Brasil Bunka-kyôkai (Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa), chamada de Bunkyô. Na primeira construção, a área construída era de 3734m², com 4 andares, mas com posteriores adições ficou maior.

As atividades principais da Bunkyô no período inicial foram a cerimônia comemorativa da vinda do Príncipe herdeiro e sua esposa, a princesa Michiko (atuais imperador e imperatriz), em maio de 1967; o festival dos 60 anos da imigração japonesa ao Brasil, em junho de 1968, a construção do auditório memorial da vinda do príncipe herdeiro ao Brasil (completo em setembro de 1970), entre outras. Estes eventos foram todos realizados tendo como centro a Bunkyô. A Federação de Associações de Províncias do Japão, o Museu de Arte Nikkei e o comitê de arte nikkei também foram incluídos neste centro. Dentro deste processo, a Bunkyô (reorganizada em 1968), tanto no nome como realidade tornou-se a instituição central da comunidade nikkei no Brasil.

A chamada “Bunkyô”, também conhecida como edifício Bunkyô (chamada de “Bunkyô” mesmo pelos nikkeis que não falam japonês), após tornar-se centro comunitário, fez com que o espaço que fica entre a Praça da Liberdade, indo da Rua Galvão Bueno até a Rua São Joaquim, fosse percebido como uma área uniforme pelos nikkeis4. Em 1965, Tanaka, que construiu o Cine Niterói, e Tsuyoshi Mizumoto criaram a Associação dos Lojistas Japoneses da Liberdade (que deu forma à ACAL: Associação Cultural e Assistencial da Liberdade). Assim, centralizada na Bunka Kyôkai e na Associação dos Lojistas, surgiu a oportunidade do desenvolvimento da área, tornando-se o Bairro Oriental.


Notas
1. A área do Bairro Oriental não é muito precisa. O bairro é freqüentemente chamado de Liberdade, como o nome do distrito administrativo, mas o Bairro Oriental tem sua região mais próspera centralizada neste distrito. O estabelecimento do símbolo desta área, a rua de lanternas vermelhas, assim como o mapa turístico da região, criado na década de 1970 (Okuyama et.al, pp. 16-17) e considerando o resultado das entrevistas feitas com os donos de lojas da região, tendo como centro a Praça da Liberdade, considera-se que a área tem como limites aproximados até a praça Dr. Joaquim Mendes, ao norte, a Av. Liberdade, a leste, a Rua São Joaquim, ao sul e a Rua Conselheiro Furtado, a oeste (ver mapa 2). Entretanto, as lojas de nikkeis, chineses e coreanos têm se desenvolvido e ultrapassado esta área atualmente.

2. Makegumi: Derrotistas, os nikkeis que reconheciam a derrota do Japão na Segunda Guerra Mundial (N.T.)

3. Kachigumi: Vitoristas, os nikkeis que não reconheciam a derrota do Japão na Segunda Guerra Mundial, alegando esta ser uma farsa imposta pelo ocidente. (N.T.)

4. Na mesa redonda “50 Anos da Liberdade em Mudança: ‘o agora e o passado’ falados pelos que desenvolveram a área”, realizada entre os comerciantes da Liberdade na ACAL, em 1996, confirmou-se que, como se vê, a existência da Bunka Kyôkai e da ACAL, estabelecida em 1965, pelo dono do Cine Niterói, Yoshikazu Tanaka, e outros, promoveu a integração dos nikkeis nesta área (ACAL, 1996, p.56).

Bibliografia
OKUYAMA, Keiji(ed.). (ano desconhecido de publicação) São Paulo Toyo-gai Guide [Guia do Bairro Oriental de São Paulo]. ACAL

COMISSÃO de Elaboração da História da Arte e Entretenimento na Colônia Nipo-Brasileira (ed.) (1986), Colônia Geinôshi [História da Arte e Entretenimento na Colônia Nipo-Brasileira]

ACAL (1996) Liberdade. ACAL

© 2007 Sachio Negawa

Brasil Japantowns Liberdade São Paulo (São Paulo)
Sobre esta série

O bairro japonês de São Paulo — sempre que eu me vejo imerso nele, cercado de caos por todos os lados, invariavelmente eu sinto a minha mente como que vazia por um instante e me pergunto: “por que teriam esses japoneses atravessado os mares e construído, do outro lado do mundo, um bairro só deles?”.

Nesta coluna, eu gostaria de dividir com os leitores a história e a imagem contemporânea dos bairros japoneses que eu visitei, procurando não me afastar da pergunta que abre este artigo.

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About the Author

Sachio Negawa é professor-assistente dos departamentos de Tradução e Línguas Estrangeiras da Universidade de Brasília. Mora no Brasil desde 1996. É especialista em História da Imigração e Estudos Comparativos entre Culturas. Tem-se dedicado com afinco ao estudo das instituições de ensino nas comunidades japonesa e asiática em geral.

Atualizado em março de 2007

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