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Kizuna 2020: Nikkei Kindness and Solidarity During the COVID-19 Pandemic

Quero sair, viver ... Lamentações de Aiko

Aiko e suas irmãs Miyuki e Tieko.

Antes da chegada dessa terrível pandemia que assola o mundo, Aiko, dona de casa, aposentada, moradora no tradicional bairro de Santana na Capital de São Paulo, tinha uma rotina de vida até que bem animada para uma senhora de sua idade. Conhecida pelos vizinhos brasileiros como dona Maria e Aitian ou Aiko-san pelos parentes, além das caminhadas habituais que fazia em ruas próximas onde mora, tinha aulas de tai chi chuan e ginástica cerebral que, segundo a professora, era para melhorar a concentração, raciocínio e memória. O encontro, destinado às pessoas da Terceira Idade, ocorria semanalmente em uma escola da Prefeitura, cedida para essa finalidade. Com a sua bengalinha a tiracolo, caminhava até lá, percorrendo várias quadras, subindo e descendo, caminho que, por si só, já era um verdadeiro exercício até mesmo para os mais jovens. E para ela não era problema, fazia com o maior prazer. Sua chegada à escola era um alvoroço só, motivo de aplausos e cumprimentos calorosos das amigas. Era a mais idosa do grupo, a “caçulinha” da turma.

Ultimamente, Aiko vem tendo lampejos de saudade do tempo que, junto com o marido Tetsuo, praticava gateball no campo do Parque do Ibirapuera. Iam cedo, de metrô, elegantemente vestidos com agasalho e tênis branco, como se fossem atletas. Nessa época, nem da bengala Aiko se utilizava. Mais do que o jogo em si, era o encontro com os amigos e amigas, todos da mesma faixa etária, o que mais lhe agradava. A pausa para o cafezinho era o momento mais aguardado. Nessa hora, junto com o café e chá que não faltavam nunca, sempre um bolo delicioso, manju e até sushi, que alegravam os comensais, merecendo deles entusiasmados encômios. Pena que esses encontros deixaram de existir.

Com o falecimento do marido e posteriormente de outros componentes do grupo, Aiko ficou deslocada, em meio aos “jovens” de 60 a 70 anos, que preencheram as lacunas surgidas segundo a lei natural da vida. Com isso, Aiko sentia-se deslocada, sem companhia. Desmotivou-se e há uns dez anos desistiu de vez! As lembranças daqueles momentos tão prazerosos costumam provocar raros momentos de melancolia nessa criatura de Deus, cuja alegria e otimismo são características maiores.

Aiko e seus filhos Roberto, Caros, Ciro e Edith.

Aiko sempre foi ativa e corajosa a vida toda! “Não gosto de ficar parada”, diz ela com convicção. Antes da quarentena, tinha como rotina a ida à padaria onde buscava os pãezinhos fresquinhos de cada dia. Um dia sim, um dia não, antes do sol raiar e dos filhos acordarem, cumpria esse ritual, caminhando umas duas quadras até o estabelecimento. Mas, antes de sair, já deixava a mesa pronta, com o café quentinho na garrafa térmica. A bem da verdade, é preciso destacar que o cafezinho da Aiko sempre foi um capítulo à parte, muito elogiado. Aprendeu a fazer café de coador quando, ainda jovem, mas mãe de cinco crianças, ajudava o marido, dono de um bar e sorveteria em Tupã, pequena cidade do interior de SP. Era responsável pelo balcão de lanches e café, que vivia sempre movimentado, graças a sua habilidade no preparo dos produtos e no trato com os fregueses. Seja de dia ou à noite, a freguesia marcava ponto no bar para saborear os deliciosos sanduíches e cafés que as mãos hábeis de Aiko preparavam. E, para ser fiel à verdade, a freguesia era atraída também pelos sorvetes naturais saborosos e inigualáveis que o marido Tetsuo preparava. É fácil imaginar por que o cafezinho de coador e o sanduíche de pernil da Aiko ficaram famosos e desejados no meio familiar e de amigos até hoje.

Aiko não vive sozinha. Tem a presença permanente de Ciro e Edith que, solteiros, acabaram se tornando companhia indispensável para a mãe. Hoje, ela não lamenta mais o fato de não terem se casado e atribui isso ao destino: “Deus sabe o que faz!”

Mesmo com a divisão de tarefas, ela ainda continua à frente da cozinha, preparando o almoço e a janta de cada dia, tarefa que faz com maestria e facilidade, mesclando culinária japonesa e brasileira. É shiro gohan com feijão e bife à milanesa, salada verde e misoshiru! Isso, sem descuidar-se de suas roupas, dos lençóis e toalhas que seus braços frágeis, mas experientes ainda cuidam, ao mesmo tempo que as plantas, a jardineira florida e a árvore na calçada em frente à casa merecem seu cuidado diário. Além de varrer a calçada todas as manhãs. É um dos poucos momentos em que ela consegue “dar uma escapadinha” e permanecer por algum tempo fora da casa, o que não deixa de ser motivo de preocupação dos filhos, pelo jeito afável e extrovertido dela. Ela gosta de conversar com as pessoas! Se deixar, fica papeando a manhã toda!

Mas Aiko tem um segredinho que ela só revela para os mais próximos: “Gosto muito quando me levam para almoçar fora, em restaurantes”, afirma com um sorriso maroto!

Aiko, na praia, fugindo da quarentena.

Outro prazer que ela sente falta e tem saudades são as viagens e passeios que realizava, graças à atenção de outros três filhos casados, Roberto, Carlos e Nilton, que se desdobram em propiciar esse prazer à mãe. Costumava ir com regularidade à praia, visitava sítios, chácaras e até passava alguns dias em hotéis-fazenda, prazeres que a deixavam muito feliz. Como justificativa, dizia que, de um lado era porque se livrava dos afazeres da casa, como cozinhar e lavar louças e, de outro, porque a fazia lembrar de quando era moça e morava em sítio, no interior, onde tinha necessidade de ajudar os pais até em trabalhos pesados, como na roça. “Quem morou em sítio, pisando o chão da terra, capinando e em contato com o verde, nunca esquecerá o cheiro da mata”, diz ela com a sabedoria de uma matuta, reforçando o quanto ainda é apegada à natureza, à vida simples. E complementa: “Sou muito ativa ainda! Vou ao médico geriatra regularmente, minha pressão é boa, meu coração, segundo disse um médico, é de uma mocinha de uns trinta anos”, diz com uma sonora gargalhada.

“Mas não quero viver tanto assim, já vivi bastante! Se Deus quiser me levar, estou preparada. Acho que já cumpri minha missão aqui! Tenho uma família maravilhosa, consegui fazer com que todos os filhos estudassem até o nível superior, filhos que me deram netos e bisnetas lindas e espertas! Mas, se Deus me deu a oportunidade de estar nesta terra ainda, quero estar bem, capaz e sem dar trabalho a ninguém”, diz Aiko, incrivelmente lúcida em seus quase 100 anos de idade, que fará em janeiro próximo. Tem cinco filhos, 5 netos e 5 bisnetas.

O advento da pandemia impôs um confinamento rigoroso aos idosos aqui no Brasil e Aiko, centenária, não ficou imune. Vem recebendo toda a atenção e cuidado da família, que procura preservá-la da melhor forma, evitando os contatos externos e a aproximação de pessoas que não façam parte do círculo familiar. Com isso, ficou sob rígida quarentena desde março deste ano, não saindo de casa e, praticamente, não recebendo visitas, mesmo de parentes mais próximos como os filhos casados, noras, netos e bisnetas. Como consolo, os telefonemas e mensagens por WhatsApp são constantes, mas ela reclama que não é a mesma coisa. Sente falta da presença física, principalmente das bisnetas, que costumam chamá-la carinhosamente de “Bisa”, de bisavó, e a cumulam de beijos e abraços todas as vezes que a visitam.

“Quero sair um pouco, dar umas voltas, mesmo que seja de automóvel! Se não morrer de doença, vou morrer de tédio!”, reclama ela aos filhos, provocando um sentimento de culpa e uma dor no coração em todos eles. É visível que o extenso isolamento vem provocando sintomas de ansiedade, cada vez mais difícil de controlar. É admirável, contudo, a resiliência e a lucidez que Aiko tem conseguido manter todo esse tempo.

Aiko Higuchi, nascida Aiko Mizobe, chegou ao Brasil em 1927, juntamente com seus pais e irmãos. Tinha apenas seis anos. De oito irmãos, hoje ela é a única sobrevivente da família de Ikuta e Koto Mizobe, originários da Província de Yamaguchi.

A história de sua vida serviria como enredo de um filme de alta dramaticidade, tal como a saga de centenas de imigrantes japoneses, que tiveram que deixar a terra natal com destino ao Brasil, no início do século XX. Sua trajetória envolveu momentos onde a dor, tristeza, sacrifício, desespero, alegria e até revolta, misturaram-se ao longo de uma vida intensa, sem que nunca a fizesse perder a confiança e a esperança em dias melhores.

Um fato doloroso que causou marcas profundas em sua vida foi o de nunca ter conseguido rever o irmão mais velho, Naoyuki, o único a ficar no Japão porque já cursava o ensino fundamental e que os pais, naquele momento, acharam melhor deixá-lo lá aos cuidados dos tios. Ele tinha apenas 9 anos. Naoyuki jamais reencontrou a família novamente. Formado e trabalhando em uma grande empresa, aos 25 anos foi vitimado pela guerra, quando prestava serviços militares em embarcação. Aiko lamenta e chora até hoje não ter conseguido rever o irmão mais velho. Segundo ela, Naotchan era bonito e inteligente!

E, de certa forma, ainda como consequência da 2ª. Guerra Mundial, a família Mizobe passou por outra tragédia, mais dolorosa e ocorrida em solo brasileiro, na histórica cidade de Bastos, no interior de SP. Cidade com forte concentração de japoneses, foi cenário de uma página negra da colônia japonesa no Brasil de então, quando a organização terrorista Shindo Renmei, formada por cidadãos japoneses que não reconheciam a derrota do Japão na 2ª. Guerra, provocou atentados contra membros da própria sociedade japonesa, em várias cidades do interior. A primeira vítima foi Ikuta Mizobe, pai de Aiko, que tinha à época apenas 21 anos, casado e com um filho de 1 ano. Ikuta era diretor da Cooperativa Agrícola de Bastos e como pessoa esclarecida e influente, foi escolhido para ser assassinado.

Aiko, revoltada com o fato, guardou mágoa profunda durante mais de cinquenta anos, até que um dia, inesperadamente, recebeu a visita da neta do cidadão japonês que praticou o tresloucado gesto. Humildemente e envergonhada, ela pediu perdão pelo ato cometido pelo avô que, segundo ela, só tomou conhecimento quando adulta, após desconfiar de algumas conversas que ouvira de várias fontes e leitura de artigos e reportagens sobre episódios acontecidos na colônia japonesa durante a 2ª. Guerra Mundial. Somente após esse episódio é que Aiko sentiu uma certa paz de espírito, dilacerado que estava seu coração deste então.

O desprendimento e coragem de Aiko foram colocados à prova quando ela tinha por volta de 60 anos e seu irmão caçula Yoshiyuki (Yotiam) ficou gravemente enfermo, necessitando de um transplante renal para poder sobreviver. Ela não pensou duas vezes. Apenas obteve a aprovação dos filhos e se colocou à disposição da equipe médica. A cirurgia foi bem sucedida e, desde então, ela vive com apenas um rim, que nunca lhe trouxe problemas.

Honra ao Mérito pelos 100 anos recebido do Bunkyo.

Para comemorar o centenário de seu aniversário, a ocorrer em 03/01/2021, os filhos tinham planejado uma grande festa, à altura do acontecimento, na qual seriam convidados parentes e amigos mais próximos, inclusive aqueles residentes no interior. Infelizmente, surgiu a pandemia, impossibilitando a comemoração na data prevista. Avisada do imprevisto, percebeu-se nela um certo desapontamento, que logo foi contornado ao se comentar com ela que uma vacina eficaz está para chegar e com isso, a sua festa de aniversário poderá ser realizada oportunamente.

Como se fosse uma compensação pelo imprevisto que ocorrera, Aiko recebeu recentemente duas notícias que a deixaram muito orgulhosa: foi agraciada com o Diploma de Honra ao Mérito pelos Cem Anos, outorgado pelo Bunkyo – Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa e de Assistência Social e também com o Certificado pela Celebração dos Cem Anos, oferecido pelo Governo do Japão, assinado pelo ex-ministro Shinzo Abe.

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Sra. Aiko, mais um pouco de paciência! Força! Gambatte kudasai!

 

© 2020 Katsuo Higuchi

Brazil covid-19 Kizuna2020

About this series

In Japanese, kizuna means strong emotional bonds. In 2011, we invited our global Nikkei community to contribute to a special series about how Nikkei communities reacted to and supported Japan following the Tohoku earthquake and tsunami. Now, we would like to bring together stories about how Nikkei families and communities are being impacted by, and responding and adjusting to this world crisis.

If you would like to participate, please see our submission guidelines. We welcome submissions in English, Japanese, Spanish, and/or Portuguese, and are seeking diverse stories from around the world. We hope that these stories will help to connect us, creating a time capsule of responses and perspectives from our global Nima-kai community for the future.

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Although many events around the world have been cancelled due to the COVID-19 pandemic, we have noticed that many new online only events are being organized. Since they are online, anyone can participate from anywhere in the world. If your Nikkei organization is planning a virtual event, please post it on Discover Nikkei’s Events section! We will also share the events via Twitter @discovernikkei. Hopefully, it will help to connect us in new ways, even as we are all isolated in our homes.