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A alegria de servir no grupo de estudos de japonês

Há pouco mais de 30 anos, eu e a minha turma da mesma faixa etária, começamos a nutrir o desejo de, como nisseis, sermos úteis à sociedade de alguma forma.

Em 1990, meu marido Issamu e eu comentamos: “No próximo ano vamos comemorar 25 anos de casados”. Nesse espaço de tempo, criamos nossos 4 filhos e eu vim desempenhando as funções de dona de casa, além de ajudar no serviço do meu marido. E, fazendo uma pausa nesse corre-corre, meu marido e eu temos servido como voluntários em atividades comunitárias e contribuído em campanhas, na medida do possível.

Quando completei 50 anos de idade, falei para a minha família em tom decisivo: “Daqui para frente vou trabalhar em prol de muito, mas muito mais pessoas”. Meus filhos ficaram na dúvida e perguntaram: “O que é que a mãe vai começar a fazer?” e eu disse: “Não precisam se preocupar que vou continuar fazendo a comida e o serviço de casa como foi até hoje”. Assim, eles ficaram aliviados.

Comecei formando um grupo de estudos de língua japonesa. Não era uma escola, mas eu tinha um professor: o dicionário, meu companheiro de todas as horas. Qualquer coisa que não entendesse, estava ele perto para me socorrer. Foi assim que comecei o meu grupo de estudos.

Um dos motivos pelo qual comecei essa atividade foi quando Y san me disse: “Outro dia, me convidaram para uma reunião na associação e eu fui. Daí o presidente falou soshiki, soshiki por várias vezes. Se fala soshiki é porque alguém morreu, não é? Pois eu fiquei sem entender nada, viu?”. Respondi: “É mesmo, não? Se tanta gente morre, é um problema!”.

Foi então que dei a seguinte explicação: “Na língua japonesa existe o kanji”. Escrevi 『組織』e『葬式』e continuei: “Esta palavra 『組織』se pronuncia soshiki e significa ‘organização’ e esta outra 『葬式』se pronuncia soushiki e significa ‘cerimônia de enterro’. Como era uma reunião da associação, a pessoa que falou deve ter se referido ao termo ‘organização’. Sabe, o kanji é muito interessante: aqui, a parte superior de 『葬』indica ‘relva`, no meio está a letra que significa ‘morrer’ e na parte inferior são duas pernas. Portanto, este kanji significa ‘pessoa morta’. Deste modo, o aprendizado de kanji se torna cada vez mais interessante”.

Ysan falou: “Que interessante! Me ensina japonês, professora!” e eu, mais do que depressa, comecei o meu grupo de estudos de japonês.

Comecei com reuniões semanais no bairro da minha família, na zona norte da capital de São Paulo. Inicialmente era apenas um aluno, mas aos poucos o número foi aumentando até que chegou a hora de acomodar as turmas do turno da manhã e da noite no salão de minha casa e, à tarde, eu ia de ônibus até outro bairro para ensinar à outra turma.

Turma da noite do grupo de estudos de japonês no Dia do Professor.

Quem procurava por essas aulas eram pessoas que não puderam aprender japonês por ser época de guerra; outras que devido aos tempos difíceis não puderam estudar e trabalharam para manter a família; quem não cursou nem a escola brasileira nem a escola de japonês. Havia pessoas oriundas de famílias que não enfatizavam o estudo do japonês por achar desnecessário e aquelas formadas em universidade, mas que não sabiam nada de japonês para uma conversação. Enfim, estavam ali por razões diversas e não menos complicadas. Era muito animador porque, seja qual fosse a razão, a vontade de aprender aumentava cada vez mais. Havia quem vinha de carro de um lugar inacreditavelmente distante, os que vinham de metrô ou de ônibus, os que iam embora felizes da vida.

Os grupos de estudo tiveram prosseguimento nos turnos da manhã, tarde e noite, quando então comecei a ir para outro bairro tomando três ônibus para ensinar num kaikan (associação japonesa). Nesse grupo, muitas vezes o número de alunos passava de 30.

Há quem possa se surpreender imaginando o que me atraía a fazer tudo isso. Um dos motivos é que eu me empenhava de coração na elaboração do material toda semana; outra razão era o ambiente alegre onde não faltavam boas risadas. S san, que já era de idade, disse um dia: “Vindo aqui eu fico feliz só de ouvir as risadas da professora. Como eu mais esqueço do que aprendo os kanji, sei que não sou um aluno aplicado, mas eu quero participar no grupo”. E eu respondi: “Eu também fico animada com a sua presença e assim elaborar o material didático fica mais prazeroso. Que você possa continuar vindo”.

Turma da manhã do grupo de estudos de japonês no Dia do Professor.

Em março de 2020, foi determinado o isolamento social como medida restritiva contra o novo coronavírus e todas as atividades foram suspensas. Pensando bem, a atividade voluntária à frente dos grupos de estudos de japonês teve continuidade por exatos 30 anos. Neste momento, me vem à memória todas as pessoas que passaram por mim, que aprenderam a conhecer a alma japonesa, as maravilhas da língua e que hoje são cidadãos atuando na sociedade.

Já no segundo ano cumprindo medidas restritivas, sinto que pessoas de idade como eu não têm mais como colaborar nas comunidades em que vivem, mas eu não me arrependo de nada. Como nissei, sou grata por ter podido servir para o bem de muitas pessoas.

“Chegou agora a nossa vez” – com este lema os jovens adultos estão unindo forças para um trabalho comunitário em prol dos desempregados que não têm condições de sustentar a família, através de campanhas de arrecadação, entrega mensal de cestas básicas às comunidades carentes. Pessoas estão doando agasalhos para amenizar um pouco o frio deste inverno, os quais são entregues junto com alimentos básicos, para a alegria de muitas pessoas. Eu quero parabenizar todos que estão envolvidos no maravilhoso trabalho voluntário nas comunidades. Que este movimento tenha continuidade e que a corrente do bem se estenda às comunidades, proporcionando muitas alegrias. Vou continuar orando para que isto se concretize.

 

* * * * *

O nosso Comitê Editorial selecionou este artigo como uma das suas histórias favoritas da série Gerações Nikkeis: Conectando Famílias e Comunidades em japonês. Segue comentário.

Comentário de Kojima Shigeru

Os dois textos concorrentes são igualmente bem elaborados e eu pude lê-los de uma vez só. Um deles é o relato de uma nikkei da segunda geração que desenvolve um trabalho comunitário na sua localidade, e há também a história que nos apresenta a pessoa que foi a primeira nissei do Brasil.

A autora do primeiro trabalho conta as razões que a levaram, de modo voluntário, a formar um grupo de estudos de língua japonesa, devido ao fato de uma pessoa ter lhe contado que ouviu a palavra japonesa soshiki (organização) que acabou entendendo como sendo shoushiki (cerimônia fúnebre). O grupo de estudos era formado por diversos alunos e o segredo de sua continuidade foram o empenho, a dedicação e o ambiente alegre onde as risadas eram uma constante. O segundo trabalho começa quando o autor atende ao telefone pensando tratar-se do aviso de algum falecimento, mas na realidade era uma pessoa que viera no mesmo navio de imigrantes e queria contar a todos que havia conhecido a filha da primeira nissei do Brasil.

Ambas as histórias dão uma sensação de leveza e tocam o coração, portanto, selecionar apenas uma é tarefa árdua. Eu gostaria de recomendar a história que tem por título “A alegria de servir no grupo de estudos de japonês”, cuja autora, Kazue Ishii, demonstra uma grande empatia.

 

© 2021 Kazue Ishii

Brasil educação estudo gerações língua japonesa línguas Nisei
Sobre esta série

O tema da 10ª edição das Crônicas NikkeisGerações Nikkeis: Conectando Famílias e Comunidades—abrange as relações intergeracionais nas comunidades nikkeis em todo o mundo, tendo como foco especial as emergentes gerações mais jovens de nikkeis e o tipo de conexão que eles têm (ou não têm) com as suas raízes e as gerações mais velhas. 

O Descubra Nikkei aceitou histórias relacionadas ao Gerações Nikkeis de maio a setembro de 2021; a votação foi encerrada em 8 de novembro. Recebemos 31 histórias (21 em inglês, 2 em japonês, 3 em espanhol e 7 em português) da Austrália, Brasil, Canadá, Estados Unidos, Japão, Nova Zelândia e Peru. Algumas foram enviadas em múltiplos idiomas.

Solicitamos ao nosso Comitê Editorial para escolher as suas histórias favoritas. Nossa comunidade Nima-kai também votou nas que gostaram. Aqui estão as favoritas selecionadas pelo comitê editorial e pela Nima-kai! (*Estamos em processo de tradução das histórias selecionadas.)

A Favorita do Comitê Editorial

Escolha do Nima-kai:

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About the Author

Nasceu no dia 13 de fevereiro de 1940 na Colônia União, Pereira Barreto, SP, filha de Tadao e Kiyoe Ozaki. Casou-se com Issamu Ishii em 2 de julho de 1966, teve 4 filhos e atualmente vive com seu marido na capital de São Paulo. Seus passatempos são leitura, viagens, escrita e haicais.

Atualizado em agosto de 2021

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