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Oh, Bachan, Como o Seu Jardim Cresce

Quanto mais o meu pai e eu damos voltas pelo Cemitério de Inglewood, mais engraçada a situação fica.

“Vira aqui. Não, vira ali. Ah, está ali!” Não importa quantas vezes a gente faça a visita, ele sempre repete as mesmas estressadas exclamações. Mas quando finalmente chegamos no topo do morro, a vista faz valer a pena as nossas peripécias.

É quase irônico ver o mundo daquela altura, vibrando com uma vida deslumbrante enquanto aqueles que já partiram descansam pacificamente acima. Nesta altitude, apenas o horizonte mescla a vida urbana com a vida após a morte.

E é neste mesmo cemitério que a minha família finalmente se reencontra, depois de quase um ano e meio de quarentena. As nuvens encobrem os suaves raios do sol, mas os nossos rostos estão brilhando de alegria enquanto desempacotamos pouco a pouco os conteúdos trazidos do carro para as nossas preparações.

Kyra com a sua avó, Mary Karatsu, voluntária de longa data do Museu Nacional Japonês Americano, no Grande Desfile da Semana Nissei de 2010.

Numa convergência de mortos e vivos, nos reunimos para comemorar o que teria sido o 97º aniversário da minha avó, também com os parentes enterrados ao seu lado.

Os tios arrumam a comida, um(a) primo(a) tira as fotos, as tias limpam as lápides da família e o meu pai prepara a bandeja de doces. A naturalidade com a qual todos assumem os seus papéis de costume faz com que seja difícil acreditar que tanto tempo já tivesse passado.

Apesar de ser uma coisa meio fora do comum, fazemos o nosso piquenique no cemitério enquanto nos deliciamos com as risadas e conversas que já vinham borbulhando há tempos. Falamos sobre férias hipotéticas e passatempos de quarentena, e antes de nos darmos conta nada resta nos pratos de papel a não ser migalhas.

Nós guardamos o que sobrou dos sanduíches de frango e atum, ao passo que a salada de batata é colocada no cooler portátil. As cadeiras são retornadas ao carro e os cobertores são dobrados com cuidado.

Tem um vento terrivelmente persistente e os nossos rostos ficaram rígidos de frio. Ainda assim, fazemos a caminhada até o último lote.

Mais uma vez, as tias limpam as lápides e cortam as flores. Mas vejo agora que não sei quem está descansando debaixo de uma das lápides. Eu conheço o seu nome e algumas das suas histórias. Mas é a data inscrita da morte, 27 de março de 2002, que me chama a atenção. Afinal, nasci apenas 70 dias depois.

Minha bisavó (ou Bachan, como todos na família se referem afetuosamente a ela) viveu bem mais de cem anos. Uma verdadeira matriarca, de acordo com o meu pai, ela puxava os cordões familiares e os entrelaçava.

Mais de dezenove anos após a sua morte, ela ainda continua presa como cola às nossas conversas. A história dos seus porta-panelas e calendários caseiros, a lição duradoura sobre como usar corretamente os pauzinhos chineses, e as histórias das suas resplendentes festas de aniversário – tudo isso mantém viva a sua memória.

Eu não conheci a Bachan, mas vejo como as sementes que ela espalhou continuam a dar frutos. Como a família ainda se reúne no Dia de Ano Novo; como fazer o inari mais delicioso. E como nos projetamos em direção ao futuro, mesmo em tempos difíceis.

Por outro lado, eu cheguei a conhecer a minha avó Mary.

Seus dedos geralmente eram pintados com um tom rosado de cor de malva, e ela se enfeitava com colares longos e diferentes. Sua geladeira frequentemente tinha seis latas da bebida Hawaiian Sun, e o Los Angeles Times ficava espalhado na toalha de vinil que protegia a mesa de jantar de madeira.

De alguma maneira, parecia que todo mundo sempre a conhecia – ela era incrivelmente carismática.

Mas dentre as suas filosofias de vida – de se vestir bem, viver bem e falar bem – está a sua lição mais praticada de todas:

A importância da família.

Minha avó sabia o que a família significava para ela: era sair abraçando todos, ter uma boa conversa e compartilhar uma boa refeição juntos. As mesas eram preparadas para que fossem cobertas por pratos fumegantes de comida que tinham acabado de sair do fogão, e a sobremesa nunca era opcional.

Como no caso da sua mãe antes dela, noto as mudas que brotaram no seu jardim. Como sempre insistimos que os convidados levem consigo as sobras das refeições. Como levamos os netos para viagens de fim de semana. E como, acima de tudo, nos esforçamos ao máximo para dar o melhor de nós.

Na era da rapidez, esses faróis de longevidade já se apagaram – as tendências desaparecem rapidamente, as notícias chegam ainda mais rápido. Tudo é feito em detrimento da qualidade.

Seria errado da minha parte dizer que eu estava acima disso tudo. Minhas roupas de "moda descartável" jazem agora em depósitos de lixo. Meus dedos atualizam a minha página inicial de forma frenética, para que eu possa tomar um gole da mais rápida e mais chamativa fonte de notícias online.

Ainda assim, enquanto o mundo gira caoticamente ao meu redor criando uma confusão insensata, a contínua batida do tambor ancestral me mantém com os pés no chão.

Propositalmente, algumas coisas não são feitas para durar. Os sanduíches de frango e atum vão ser comidos, as lápides da família vão ficar novamente cheias de sujeira, e as flores apodrecerão e serão absorvidas pelo solo.

Por outro lado, algumas coisas são feitas para durar. Costurado pelas suas próprias mãos, o calendário de 33 anos da Bachan ainda está na casa da minha tia e meu tio. A toalha de mesa de vinil da vovó foi removida, revelando uma bela mesa moderna de meados do século que agora se encontra na minha própria sala de jantar.

E por meio das coisas materiais pode ser encontrado o seu ainda forte investimento na família. Com valores firmes à altura de ensinamentos firmes, a base de algo que não pode ser facilmente extirpado vem resistindo o passar do tempo – cinco gerações para ser exata.

Minha bisavó e minha avó jamais teriam vivido para poder ver os meus próprios possíveis netos. No decorrer de várias décadas, os seus nomes iam e vinham – como uma brisa de verão – em conversas esporádicas.

Mas, mesmo além da morte, eu sei que elas seriam muito mais: uma lição sobre como segurar os pauzinhos chineses, uma insistência para que oferecêssemos as sobras das nossas refeições, um lembrança para que déssemos o nosso maior amor.

Como diz um anônimo provérbio grego: “Uma sociedade se desenvolve em grande forma quando os velhos plantam árvores em cujas sombras eles sabem que nunca se sentarão”.

E é então que me dou conta que as sementes que eles plantaram brotaram magnificamente – para você, para mim e para todas as gerações que estão por vir.


* Este artigo em inglês foi publicado originalmente no [diário japonês de Los Angeles] Rafu Shimpo em 11 de maio de 2021.

 

* * * * *

O nosso Comitê Editorial selecionou este artigo como uma das suas histórias favoritas da série Gerações Nikkeis: Conectando Famílias e Comunidades em inglês. Segue comentário.

Comentário de Christine Piper

A história de Kyra Karatsu – “Oh, Bachan, como o seu jardim cresce” – é a minha escolha dentre as histórias na língua inglesa deste ano. Karatsu usa o simples ritual de uma reunião de família como ponto de partida para explorar conceitos como o significado da família, costumes e legados culturais – todos tão importantes nas comunidades de imigrantes. Este relato está bem relacionado ao tema “gerações”, enquanto que também alude a ideias maiores. Quando é que as tradições são mais valiosas que a modernidade? Quais são os valores mais importantes para nós? As descrições evocativas do ambiente e outras qualidades literárias (por exemplo, o uso de metáforas) ajudam a firmar a narrativa e a criar um espaço de placidez, de forma que o ato de ler se torna um antídoto para a cultura “rápida” e em constante mudança que nos rodeia – e a qual a autora se refere. Admirável pela sua profundidade e sobriedade, “Bachan” é uma bela e inspiradora história.

 

© 2021 Kyra Karatsu / Rafu Shimpo

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Sobre esta série

O tema da 10ª edição das Crônicas NikkeisGerações Nikkeis: Conectando Famílias e Comunidades—abrange as relações intergeracionais nas comunidades nikkeis em todo o mundo, tendo como foco especial as emergentes gerações mais jovens de nikkeis e o tipo de conexão que eles têm (ou não têm) com as suas raízes e as gerações mais velhas. 

O Descubra Nikkei aceitou histórias relacionadas ao Gerações Nikkeis de maio a setembro de 2021; a votação foi encerrada em 8 de novembro. Recebemos 31 histórias (21 em inglês, 2 em japonês, 3 em espanhol e 7 em português) da Austrália, Brasil, Canadá, Estados Unidos, Japão, Nova Zelândia e Peru. Algumas foram enviadas em múltiplos idiomas.

Solicitamos ao nosso Comitê Editorial para escolher as suas histórias favoritas. Nossa comunidade Nima-kai também votou nas que gostaram. Aqui estão as favoritas selecionadas pelo comitê editorial e pela Nima-kai! (*Estamos em processo de tradução das histórias selecionadas.)

A Favorita do Comitê Editorial

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About the Author

Kyra Karatsu nasceu e foi criada em Santa Clarita, na Califórnia. Atualmente, ela é estudante do primeiro ano de Jornalismo no College of the Canyons em Valencia, Califórnia, e espera se transferir para uma universidade após receber o seu diploma de Associate in Arts [concedido em "colleges" de dois anos de ensino superior]. Kyra é uma yonsei nipo-alemã, e gosta de ler e escrever sobre as experiências dos asiático-americanos.

Atualizado em janeiro de 2021

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